20080518

POSFÁCIO

Minha conversão à democracia foi um processo longo. Há pouco mais de vinte anos, publiquei um livro intitulado “Autonomia e partido revolucionário” (1985) (1), em que questionava a teoria leninista da organização revolucionária. Era um começo, tímido ainda, mas que funcionou como uma primeira fissura no dique. Na segunda metade dos anos 80 constatei que a idéia de classe social e de luta de classes continha, em si, o gérmen da negação da legitimidade do outro; ou seja, negava o pressuposto fundamental da democracia ao definir “campos” de legitimidade com base em critérios extrapolíticos (como a posição em relação ao processo de produção). No final daquela década todos sabemos o que aconteceu: a queda do Muro de Berlim precipitou na minha cabeça e na de vários outros militantes e dirigentes de esquerda, a derrubada de certos “muros” conceituais que nos faziam ver o mundo da política como uma realidade inexoravelmente vincada, de cima a baixo, por “campos” em eterno confronto. Aquela imagem dos jovens alemães demolindo o muro e ao mesmo tempo dançando sobre ele teve um efeito simbólico mais profundo do que geralmente se imagina. Foi a senha, ou melhor, a pedra de toque para a desconstituição de vários mitos que se alojavam, vamos dizer assim, “no andar de baixo” da nossa consciência. Com a derruição desse subsolo no qual estavam fundeados nossos preconceitos veio tudo a baixo. Para muitos, entretanto, talvez para a maioria dos meus companheiros de viagem, é forçoso reconhecer que o muro parece não ter ainda caído completamente.

Daí para frente meu processo de conversão foi acelerado. E não parou mais. Nos anos 90 comecei a me dedicar ao desenvolvimento humano e social sustentável e ao papel estratégico da sociedade civil na promoção desse desenvolvimento. Minha participação na Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, nos anos de 1993 a 1995, foi decisiva, tanto para me fazer ver a falta de horizontes (e de idéias) da vida partidária, quanto para perceber a força de uma nova sociedade civil vibrante que àquela época emergia no Brasil.

Dedicado prioritariamente ao desenvolvimento local, encontrei o conceito e as teorias nascentes do capital social. A partir do final da década de 1990 obriguei-me a realizar uma investigação sistemática buscando refazer uma teoria do capital social que não omitisse a análise de seus pressupostos cooperativos. O trabalho com o capital social me levou a ler Tocqueville, Jane Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e Levy. Escrevi um volume sistematizando essas leituras, em que já ficavam claras as relações entre capital social, redes sociais e democracia (2).

Já no início de 2000, descobri as redes e iniciei minhas explorações imaginativas no assunto, que continuam até hoje. Foi quando descobri também as relações intrínsecas entre democracia e sustentabilidade, que têm constituído – juntamente com a pesquisa sobre as redes sociais – meu objeto principal de trabalho teórico e prático nesta primeira década do presente século.

Embora o conceito de capital social tenha sido sugerido há muito tempo, em meados do século 19 a meu ver (pois que em geral gosto de acentuar o seu caráter tocquevilliano) e embora a expressão – com o sentido que hoje atribuímos ao conceito – seja do final da década de 1950 (e o crédito aqui vai inegavelmente para Jane Jacobs), todas as teorias do capital social são teorias elaboradas a partir dos anos 90 do século passado (3).

Não é por acaso que o florescimento de idéias e práticas inovadoras, baseadas na noção de capital social, tenham florescido justamente no feliz intervalo vivido pelo mundo entre aquele promissor 9/11 e o fatídico 11/9, quer dizer, entre a queda do Muro de Berlim, em 1989 e o atentado às torres gêmeas do WTC, em 2001. Se o tempo na história do mundo é contado em décadas, aquela foi a década virtuosa do ponto de vista das mudanças sociais que possibilitaram a experimentação e a difusão de concepções e práticas compatíveis com a noção de capital social.

As idéias de rede (social) e democracia (na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos) tiveram, nos anos 90, condições particularmente favoráveis para prosperar. Depois, como todo mundo sabe, sobreveio um revés, uma onda negativa, um recrudescimento do estatismo nas políticas nacionais e do unilateralismo na política internacional. Pressionado por baixo e por cima pela onda glocalizante, o velho Estado-nação reagiu, quis retomar as rédeas e, para tanto, no plano interno, recentralizou sua atuação, reeditou programas assistencialistas e ações clientelistas, enfraqueceu a sociedade civil e, no plano externo, reforçou belicosas variantes de realpolitik; enfim, desinvestiu no capital social.

É curioso notar que, para produzir tal regressão, não importaram muito as ideologias tradicionais: direita e esquerda agiram – como aliadas tácitas – de modo a tentar refrear o sopro de liberdade que varreu o mundo sob o impulso das grandes correntes históricas da globalização (econômica), da democratização (política) e da pós-modernização (cultural) (4).

No entanto, a despeito desse movimento regressivo, alguma coisa parece estar avançando subterraneamente nos últimos anos. Trata-se de algo que não é ainda muito visível no momento, mas que prepara, talvez, uma transformação mais profunda.

Queria chamar a atenção para esse ponto, pois foi a partir dos anos 2000 que começamos a compreender mais profundamente a estrutura e a dinâmica da rede social. Já dispúnhamos de muitos insights nesse sentido, mas não tínhamos ainda um pensamento organizado a respeito e não podíamos justificar tais antevisões com alguma base científica. Por exemplo, foi somente a partir de 2002 que conseguimos ter uma visão mais clara dos efeitos da rede P2P (peer-to-peer, ponto-a-ponto, pessoa-a-pessoa) sobre o “tamanho do mundo” em termos sociais e não geográfico-populacionais (“Small World Networks”). E foi somente a partir dessa compreensão que conseguimos justificar as estratégias de investimento em capital social como estímulos ao aumento da conectividade, estabelecendo afinal um nexo conotativo entre democracia (como espécie de “metabolismo” próprio das redes sociais) e desenvolvimento (como sinergia entre diversos tipos de recursos – para além da renda e da riqueza –, com destaque para um tipo de “capital”, extra-econômico, que foi chamado de capital social mas que, no fundo, é, simplesmente, a rede social).

Ora, isso também não é pouca coisa. Significa que as teorias do capital social são teorias-ponte entre a velha sociologia e as novas teorias das redes sociais. Quando anunciei isso pela primeira vez, em um seminário científico para uma pequena turma de doutorado da Universidade de Brasília, não tinha ainda as idéias muito claras a respeito e fiquei com medo de ter desestimulado alunos que pretendiam dedicar seus melhores esforços às teorias do capital social. Agora, porém, vejo com mais nitidez um cenário futuro para o desenvolvimento das teorias das redes sociais no qual não fará mais sentido ter que apelar para o recurso de batizar a cooperação ampliada socialmente (que se viabiliza através dos ‘múltiplos caminhos’, quer dizer, das redes) com o nome de “capital social” apenas para reforçar seu caráter de recurso ou fator do desenvolvimento.

O próprio conceito de desenvolvimento está passando por transformações importantes nesta década. Uma nova visão do desenvolvimento está emergindo, que não toma mais essa noção como um produto (e suas condições de produção) e sim como um processo permanente de mudança, de uma classe de mudança congruente com o meio (ou seja, àquela classe que poderia ser chamada de sustentabilidade). Um processo que, no fundo, nada mais é que o do aprendizado coletivo de comunidades de projeto e o da afirmação de novas identidades no mundo.

Durante a noite escura em que estamos vivendo nos anos iniciais deste século tenho tentado trabalhar um pouco com essas idéias, fazendo explorações imaginativas no universo de conexões ocultas que produzem o que chamamos de ‘social’. E tenho trabalhado com as idéias de democracia e de radicalização – no sentido de democratização – da democracia.

Nesse caminho fui muito ajudado pela mente admirável de Humberto Maturana e por dois importantes pensadores da democracia: Hannah Arendt e John Dewey, que descobri tardiamente. De certo modo, este livro é um tributo a John Dewey.


Notas
(1) Franco, Augusto (1985). Autonomia e partido revolucionário. Goiânia: Ferramenta, 1985.
(2) Franco, Augusto (2001). Capital Social: leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e Levy. Brasília: Instituto de Política, 2001.
(3) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
(4) Utilizo aqui o interessante esquema de Claus Offe; cf. Offe, Claus (1999). “A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade”, in Bresser Pereira, L. C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999.

Nenhum comentário: