20080518

CAPÍTULO H | LIBERDADE

... que o sentido da política (democrática) é a liberdade, não a igualdade;

A igualdade é a condição para a política democrática, não o seu sentido ou a sua finalidade.

Eis a confusão que causou a tragédia da falta de conforto das esquerdas com a democracia. Como as esquerdas querem voltar a uma mítica igualdade – na verdade, um suposto igualitarismo – primordial ou original, imaginam que se a democracia não servir para isso, para nada mais servirá. Trata-se, evidentemente, de uma confusão entre democracia e cidadania. Se houver cidadania, é a democracia que leva à inclusão na comunidade política. Se não houver cidadania, a democracia não pode sequer se exercer.

A igualdade é a condição para a política democrática, não seu sentido ou sua finalidade. Mas a igualdade a que se refere a democracia é uma igualdade de condições de proferimento de opiniões (a matéria-prima da política). A democracia não serve para levar um conjunto humano para a igualdade social e econômica. Não pode ser o instrumento para transformar fracos em fortes, pobres em ricos ou ignorantes em sábios (para considerar aquelas três separações básicas que, segundo Bobbio, estariam na raiz do fenômeno do poder co-implicado na transformação de diferenças em separações). É um modo (político) de convivência em que os fracos, os pobres e os ignorantes têm as mesmas condições de opinar – e, em um sentido mais amplo, de participar da definição dos destinos coletivos – que os fortes, os ricos e os sábios. Isso não é pouca coisa na medida em que tal exercício continuado acabará incidindo não sobre essas diferenças em si, mas sobre as separações que se instalam a partir delas.

Ao não ver que o sentido da política é a liberdade, deixa-se de perceber o que é próprio da política, o que pertence propriamente à sua esfera, e tende-se a incluir na esfera da política (e na esfera da democracia) entes que nela não podem habitar, como, por exemplo, relações sociais e econômicas de igualdade e eqüidade. Mas a democracia, como percebeu Hannah Arendt e não perceberam os defensores de uma suposta “democracia socialista”, só vale para iguais. Por isso, os escravos não poderiam mesmo participar da democracia grega e o fato desses não-cidadãos não poderem participar da ágora não descredencia o conceito grego de democracia, antes o afirma.

O fato de ser justa a preocupação com a igualdade e de julgarmos, corretamente, como indesejável uma sociedade escravagista nada tem a ver com a democracia em si mesma, e sim com um outro imperativo ético: o da universalização da cidadania.

Outra coisa são as conseqüências da democracia – ou do exercício da política como “pazeamento” – para o que se convencionou chamar de democratização da sociedade, aí incluído o sentido de inclusão universal de seus componentes nas decisões coletivas, ou seja, a chamada cidadania política. Mas relações sociais democráticas, assim como democracia social e democracia econômica, são conceitos deslizados. Democracia é, definitivamente, política. A questão aqui é saber como a democracia (política) pode repercutir sobre a igualdade (social) ou sobre a repartição mais igualitária dos recursos (econômicos), o que não é a mesma coisa que dizer que só poderá existir “verdadeira” democracia à medida que existir igualdade social e eqüidade econômica, como faz, por exemplo, uma parte dos autocratas, quer dizer, dos que praticam a política como uma questão de ‘lado’ (aquela parte que se caracteriza como “esquerda”).

Por outro lado, no que tange à inclusão na cidadania política, mesmo nesse caso tal inclusão, depois dos gregos e até hoje, sempre foi relativa e limitada, por exemplo, ao direito de delegar e de se fazer representar, ao direito de voto de tempos em tempos, pelo qual se abre mão do direito de participar a qualquer tempo (e em tempo real) das decisões – coisa que, diga-se de passagem, não foi inventada pelos gregos e que não pode ser julgada como mais democrática do que os procedimentos que eles inventaram, só podendo ser justificada em virtude de impossibilidades técnicas (portanto, extrapolíticas) quando se alega que sociedades populosas não teriam condições de adotar mecanismos de democracia direta. Mas essa não parece ser a “verdadeira razão”, já que sempre existiram meios de tornar cada vez mais freqüentes, diretos e participativos os processos de decisão (até com tambores e sinais de fumaça, para não falar, nos últimos dez anos, da possibilidade de fazer isso em tempo real usando recursos telemáticos). Ademais, parece haver aqui uma imprecisão factual: as comunidades gregas nas quais se praticava a política stricto sensu, quer dizer, a democracia não predominantemente delegativa – as poleis, incorretamente caracterizadas como Cidades-Estado – não eram tão pequenas assim. Segundo Finley (1981), “ao eclodir a Guerra do Peloponeso, em 431, a população ateniense, então no seu auge, era da ordem de 250 mil a 275 mil habitantes, incluindo-se livres e escravos, homens, mulheres e crianças... Corinto talvez tenha atingido 90 mil; Tebas, Argos, Corcira (Corfu) e Acraga, na Sicília, 40 mil a 60 mil cada uma, seguindo-se de perto o resto, em escala decrescente...” – ou seja, o tamanho dos nossos atuais municípios (1).

A “verdadeira razão”, aludida aqui, pela qual não se amplia a chamada cidadania política é a mesma razão pela qual não se exerce a política como “pazeamento” das relações, ou seja, porque algo está impedindo que isso ocorra. A democracia, desde que foi inventada, é disputada por tendências que querem autocratizá-la e tendências que querem democratizá-la. A efetivação dessas últimas tenderia a instalar o ‘estado de paz’ pelo exercício da política, o que não pode ocorrer enquanto houver incidência e reincidência predominantes das primeiras.

Restaria uma última questão: por que o exercício da política como liberdade – ou seja, a prática da democracia – não tem conseguido evitar as guerras ao longo da história? A resposta é bem mais simples do que pode parecer: porque ao longo da história não existiram, em volume suficiente, as tais práticas democráticas. Basta ver que as democracias (no sentido “fraco” do conceito) – pelo menos as que existem como regimes de governo na contemporaneidade – não têm guerreado entre si. Esse é um bom indício (e um bom começo). Sobre a democracia (no sentido “forte” do conceito) como modo de praticar a política na vida social, podemos dizer que ela não consegue evitar as guerras na exata medida em que também não consegue se exercer na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. Ou seja, a guerra acontece na medida em que não se consegue praticar a política como “pazeamento” das relações, porque algo está impedindo que isso ocorra.

Indicações de leitura

Seria bom continuar lendo os textos de Hannah Arendt, sobretudo os fragmentos das “Obras Póstumas” compilados por Ursula Ludz e também o texto: “Será que a política de algum modo ainda tem um sentido”, publicado na coletânea A dignidade da política (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993). E ainda o texto “Que é liberdade”, que faz parte do volume Entre o passado e o futuro (1968).

Para entrar na “polêmica” fundante da reinvenção democrática dos modernos, seria importante confrontar dois clássicos: o Tratado Teológico-Político (pelo menos o último capítulo) de Spinoza (1670) com o Leviatã de Hobbes (1651).


Nota
(1) Cf. Finley, M. I (org.) (1998). O Legado da Grécia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

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