20080518

CAPÍTULO S | CENTRALIZAÇÃO

... que todo centralismo é autocrático;

A democratização está co-implicada no aumento da distribuição das redes sociais.


Com exceção da compulsória obediência às leis democraticamente aprovadas, qualquer tipo de centralismo, ou seja, de exigência incondicional de obediência à vontade do chefe ou de um comando colegiado, mesmo que seja à vontade de uma instância eleita, introduz um mecanismo autocrático, ainda quando se refira a questões decididas por ampla maioria. Decisões democráticas devem ser acatadas por aqueles que concordam com elas ou que, mesmo discordando de seu conteúdo ou de sua forma, admitem, entretanto, a necessidade de acatá-las em função de valores e objetivos que estimam estar em jogo, cabendo ao processo democrático ensejar a possibilidade de convencimento ou de geração de decisões as mais consensuais possíveis. Assim, nenhuma organização política de adesão voluntária que imponha, por exemplo, fidelidade aos seus membros mediante sanção ou ameaça de uso de sanção pode ser democrática (no sentido “forte” do conceito), uma vez que fidelidade, na política como em qualquer outro campo da atividade humana, só é efetiva se for conquistada e consentida, jamais imposta. Via de regra o que está em jogo aqui não é o fortalecimento da democracia, mas o fortalecimento do poder (autocrático) dos chefes.

A centralização (como topologia da rede social), entretanto, vai muito além do centralismo (como procedimento político). Talvez só aqui tenhamos chegado ao centro da questão: a democratização é uma horizontalização – no sentido topológico de distribuição – das relações, enquanto que a centralização (tanto a monocentralização, quanto a descentralização, que na verdade é uma multicentralização) é uma autocratização. Em outras palavras, há uma relação intrínseca entre a forma (social) de conexão e o modo (político) de regulação de conflitos.

Embora a chamada ciência política ainda não tenha se dado conta da existência desse nexo conotativo entre rede social e democracia (no sentido “forte” do conceito), a democratização está co-implicada no aumento da distribuição das redes sociais (e não na aposta no padrão organizativo centralizado ou multicentralizado da maioria das instituições políticas, públicas e privadas, como os partidos e os chamados movimentos sociais, as corporações, os sindicatos, as associações ou outras formas tradicionais de arrebanhamento), o que significa enfocar e valorizar o cidadão desorganizado e conectado que compõe o imenso contingente da sociedade civil.

Para a democracia (no sentido “forte” do conceito) na sociedade civil, trata-se, portanto, de abrir mão de replicar formas organizativas piramidais, verticais, baseadas no fluxo comando-execução. Ou seja, em vez de engordar a velha burocracia corporativo-partidária e a nova burocracia associacionista (das ONGs, inclusive), apostar nas redes de pessoas, que conectem os tais 'cidadãos-desorganizados', uns com os outros, em prol de objetivos comuns, expandindo uma nova esfera pública não-estatal. Trata-se de mostrar, na prática, que o cidadão pode, sim, fazer política pública, que a sociedade pode tomar iniciativas coletivas, aumentando seu protagonismo e seu empreendedorismo.

Não há como garantir que uma rede articulada voluntariamente manifestará os mesmos fenômenos que são próprios da rede social que existe em qualquer sociedade independentemente de nossos esforços organizativos (sim, o que recentemente vem sendo chamado de ‘sociedade-rede’ – e. g., Guéhenno, 1993; Castells, 1996 – refere-se a qualquer sociedade, pois o que varia é a topologia e a conectividade, não o fato de ser sociedade-rede já que toda sociedade humana o é). As evidências, no entanto, mostram que, quanto mais distribuídas forem as redes que voluntariamente articulamos, mais elas conseguem se sintonizar ou se comunicar com essa rede social que existe desde que existam conexões entre pessoas, independentemente de nossos esforços organizativos (e que poderíamos chamar, como recurso explicativo, de “rede-mãe”).

As evidências mostram também que mais chances teremos de reproduzir, em redes voluntariamente construídas, os fenômenos que se manifestam na “rede-mãe” se essas redes que articulamos forem redes de pessoas (P2P ou peer-to-peer). Ou seja, instituições hierárquicas conectadas entre si podem até tentar se articular em rede, mas dificilmente constituirão uma rede capaz de espelhar a “rede-mãe” – quer dizer, uma rede distribuída (P2P) – configurando-se quase sempre como estruturas conectivas com topologia descentralizada. O motivo é quase óbvio: instituições hierárquicas tendem a hierarquizar as redes de que fazem parte, que, assim, deixam de ser redes para se transformar em frentes de entidades ou em coligações de organizações tradicionais e, às vezes, em holdings.

Para a democracia (no sentido “forte” do conceito), não se trata de sonhar com coisas ideais, irrealizáveis, mas de mudar a forma como nos comportamos política e administrativamente em termos orgânicos. Trata-se de mudar a matriz de projetos, programas e ações governamentais e não-governamentais em todos os níveis. Tudo ou quase tudo que organizamos atualmente com base no padrão-mainframe, pode ser reorganizado segundo um padrão-network, desde um programa de alfabetização de jovens até uma organização política. Podemos fazer isso sem computador e, inclusive, sem um único e miserável telefone celular. Já existe o telefone fixo, já existe o correio e já existe – há alguns milhares, talvez milhões, de anos – a possibilidade de diálogo em um encontro presencial. Não é o meio tecnológico que faz o "milagre" e sim o modo de conexão e o grau de conectividade. Até com sinais de fumaça é possível democratizar procedimentos, ampliar a freqüência e a base de consultas de opinião, incorporar pessoas como sujeitos e transformar público-alvo e beneficiários em participantes voluntários. Se não o fazemos, não é por efeito de qualquer "exclusão digital" e sim por força de uma cultura política e organizativa autoritária, hierárquica, sacerdotal e, em grande parte, autocrática.

Quem faz netweaving faz, pois, democracia (no sentido “forte” do conceito). Afinal, é necessário reconhecer que tinha razão o pioneiro das redes, Robert Muller, quando escreveu há mais de 20 anos: “conforme caminhamos para o terceiro milênio, talvez a participação em networks se torne a nova democracia, um novo elemento importante no sistema de governança, um novo modo de vida nas complexas e miraculosas condições globais do nosso estranho e maravilhoso planeta vivo, girando e circulando no universo prodigioso em uma encruzilhada de infinidade e eternidade” (1).

Os netweavers são os "tecelões" (para aproveitar uma expressão de Platão, no diálogo “O Político”, que poderia ter sido feliz se não se referisse ao homem régio, possuidor da ciência régia da política) e os animadores de redes voluntariamente construídas. Na verdade, eles constroem interfaces para "conversar" com a "rede-mãe". Os netweavers não são necessariamente os estudiosos das redes, os especialistas em Social Network Analysis ou os que pesquisam ou constroem conhecimento organizado sobre a morfologia e a dinâmica da sociedade-rede. Os netweavers, em geral, são políticos, não sociólogos. E políticos no sentido prático do termo, quer dizer, articuladores políticos, empreendedores políticos e não cientistas ou analistas políticos.

Nos sistemas representativos atuais (que realizam a democracia no sentido “fraco” do conceito), os políticos, entretanto, não são netweavers, mas exatamente, o contrário: eles hierarquizam o tecido social, verticalizam as relações, introduzem centralizações, obstruem os caminhos, destroem conexões, derrubam pontes (ou fecham os atalhos que ligam um cluster a outros clusters, separando uma região da rede de outras regiões), excluem nodos; enfim, introduzem toda sorte de anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. Fazem tudo isso porque o tipo de poder com o qual lidam – o poder, em suma, de mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade – é sempre o poder de obstruir, separar e excluir. E é o poder de introduzir intermediações ampliando o comprimento da corrente, dilatando a extensão característica de caminho da rede social ou aumentando seus graus de separação (ou seja, diminuindo a conectividade). Não é por outro motivo que os políticos tradicionais funcionam, via de regra, como despachantes de recursos públicos, privatizando continuamente capital social. Pode-se dizer que, nesse sentido, os políticos tradicionais são os anti-netweavers, na medida em que contribuem para tornar a rede social menos distribuída e mais centralizada ou descentralizada (isto é, multicentralizada).

Também não é a toa que todas as organizações políticas – mesmo no interior de regimes formalmente democráticos – têm topologia descentralizada (quer dizer, mais multicentralizada do que distribuída). Essa também é uma maneira de descrever, pelo avesso, o papel dos netweavers.

É claro que a "culpa" por esse comportamento "desenredante" não é dos políticos tradicionais individualmente. Eles são "produzidos" pelo próprio sistema político na medida em que esse sistema não está suficientemente democratizado (no sentido “forte” do conceito). Em outras palavras, quanto mais democratizado estiver o sistema político mais o agente político atuará como um netweaver; e vice-versa (2).

Indicações de leitura

Para entrar em contato com essa temática (ou problemática), é impossível deixar de ler, por exemplo, o livro seminal de Pierre Levy: “A inteligência coletiva” (1994); o livro de Steven Johnson: “Emergência” (2001); o livro de Manuel Castells: “A galáxia da Internet” (2001); e três textos recentes de David de Ugarte: “Analizando redes sociales” (2004), “11M. Redes para ganar una guerra” (2006) e “El poder de las redes” (2007). Vale a pena explorar também (e levar a sério) a metáfora “The Matrix”, não apenas assistindo a trilogia, mas lendo a coletânea: Irwin, William (org.) (2002). “Matrix: bem-vindo ao deserto do real”. São Paulo: Madras, 2003 (3).

Convém ler também: Bard, Alexander & Soderqvist, Jan. Netocracy: The New Power Elite and Life After Capitalism (existe edição em espanhol: Bard, Alexander e Söderqvist, Jan (2002). La netocracia: el Nuevo poder en la Red y la vida después del capitalismo. Espanha: Pearson Educación, 2005).


Notas
(1) Cit. em Lipnack, Jessica & Stamps, Jeffrey (1982/1986). Networks: redes de conexões. Aquariana, São Paulo, 1992.
(2) É preciso considerar que os netweavers articulam e animam redes (netweaving) – conectando pessoas-com-pessoas, com o grau de topologia distribuída que for possível alcançar – independentemente do objetivo dessas redes. Podem ser netweavers digitais (ou cybernetweavers), que contribuam, por exemplo, para expandir a blogosfera, quer inaugurando seu próprio blog, quer ajudando outras pessoas a adquirirem essa efetiva condição de inclusão digital, quer criando ambientes interativos e programas que sirvam para agregar blogs por temas de interesse. Mas podem também se dedicar a induzir o desenvolvimento por meio de redes comunitárias ou setoriais. E podem, ainda, assumir um papel político, mais explícito, de experimentar e disseminar inovações políticas ensaiando formas alternativas de democracia (no sentido “forte” do conceito) – quer dizer, de democratização da democracia – ou de governança compartilhada em redes voluntárias de participação cidadã, como veremos no Epílogo deste livro.
(3) Para começar a ler alguma coisa sobre redes e sobre as relações entre redes, sistemas complexos e democracia, recomendam-se os seguintes textos (alguns muitos claramente introdutórios e outros, como a trilogia de Manuel Castells, mais difíceis de digerir): Lipnack, Jessica & Stamps, Jeffrey (1982/1986). Networks: redes de conexões. Aquariana, São Paulo, 1992; Lipnack, Jessica & Stamps, Jeffrey (1993). Redes de Informações ["The TeamNet Factor"]. São Paulo: Makron Books, 1994; Castells, Manuel (1996). A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, em três volumes: “A sociedade em rede”, “O poder da identidade” e “Fim de milênio”. São Paulo: Paz e Terra, 1999; Capra, Fritjof (1996). A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1997; Castells, Manuel (1999). “Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação” in Bresser Pereira, L. C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999; Gladwell, Malcolm (2000). O ponto de desequilíbrio: como pequenas coisas podem fazer uma grande diferença. Rio de Janeiro: Rocco, 2002; Oram, Andy (org.) (2001). Peer-to-peer: o poder transformador das redes ponto a ponto. São Paulo: Berkeley, 2001 (ler em especial o artigo de Hong, Theodore (2001): “Desempenho”); Capra, Fritjof (2002). As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2002; Martinho, Cássio (2003). Redes: uma introdução às dinâmicas da conectividade e da auto-organização. Brasília: WWF-Brasil, 2003; além, é claro, dos textos já indicados acima de David de Ugarte e de Alexander Bard e Jan Soderqvist. Para quem está realmente interessado em estudar o assunto (redes) em profundidade, então algumas das obras mais importantes, pelo menos para começar, são as seguintes: Wasserman, Stanley & Faust, Katherine (1994). Social Network Analysis: methods and applications. Cambridge: Cambridge University Press, 1999; Wasserman, Stanley & Galaskiewicz (orgs.) (1994). Advances in Social Network Analysis: research in the social and behavioral sciences. Thousand Oaks: Sage Publications, 1994; Watts, Duncan (1999). Small worlds: the dynamics of networks between order and randomness. New Jersey: Princeton University Press, 1999; Barabási, Albert-László (2002). Linked: how everything is connected to everything else and what it means. New York: Basic Books, 2002; Watts, Duncan, Dodds, Peter & Muhamad, Roby (2002). “Um Estudo Experimental de Busca em Redes Sociais Globais”. Science (2 December 2002; accepted 23 May 2003 10.1126/science.1081058): ver a edição de Augusto de Franco (2003), disponível in ‘Carta Capital Social 107’ (www.augustodefranco.com.br); Rheingold, Howard (2002). Smart mobs: the next social revolution. New York: Basic Books, 2002; Buchanan, Mark (2002). Nexus: Small Worlds and groundbreaking science of networks. New York: WWNorton, 2002; Watts, Duncan. Six degrees: the science of a connected age. New York: W. W. Norton & Company, 2003; Strogatz, Steven (2003). Sync: the emerging science of spontaneous order. New York: Hyperion, 2003; Cross, Rob & Parker, Andrew (2004). The hidden power of social networks: understanding how work really gets done in organizations. Boston, MA: Harvard Business School Press, 2004; Newman, Mark, Barabási, Albert-László & Watts, Duncan (eds.) (2006). The structure and dynamics of networks. New Jersey: Princeton University Press, 2006.

Um comentário:

kadencaden disse...

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