20080518

CAPÍTULO G | PAZ

... que a democracia é um modo pazeante de regulação de conflitos;


A recusa à democracia ideal leva à autocracia.

Mohandas Gandhi afirmou certa vez – e desde então o dito tem sido mil vezes repetido – que não existe caminho para a paz: a paz é o caminho. Talvez sem saber, ele estivesse definindo a democracia no sentido “forte” do conceito.

Argumenta-se freqüentemente que essa é uma visão ideal de democracia, para dar a entender que, na prática, as coisas não podem acontecer desse modo. Mas a única maneira de tomar a democracia como um valor – e, mais do que isso, como o principal valor da vida pública – é apreendê-la como idéia. A adesão a uma concepção ideal de democracia não significa incorrer em algum tipo de desvio idealista. Por outro lado, não aceitar uma visão ideal de democracia sob o pretexto de que, na prática, tal visão não pode se materializar plenamente, acaba levando – isso sim – ao realismo político. A recusa à democracia ideal leva à autocracia.

Se, para uma concepção ideal de democracia, a democracia deve ser compreendida como uma “arte da paz”, isso não significa que devamos recusar a política realmente existente (que não é isso) em nome de uma política realmente inexistente (que seria isso). Em um contexto em que a democracia vem sendo disputada por tendências que querem autocratizá-la e tendências que querem democratizá-la, parece óbvio que uma visão de democracia ideal equivale a um programa de democratização (da democracia).

Porque a política realmente existente é também a política que permite a superação do que existe (inclusive da superação das formas pelas quais ela, a própria política, materializa-se). Ou seja, a política é sempre preferível à não-política (à guerra ou à “paz” como “estado de guerra”, como preparação para guerra, a “paz” dos impérios e das autocracias ou dos cemitérios). Embora seja freqüentemente pervertida como “arte da guerra”, a política é a única possibilidade de evitar a guerra, em quaisquer de suas formas.

Em outras palavras, enquanto houver política permanece aberta a possibilidade de correção das perversões autocratizantes de que ela é vítima. Se isso não significa, por um lado, que devemos renunciar à política realmente existente, com base na evidência de que ela ainda é, predominantemente, uma espécie de “arte” da “guerra sem derramamento de sangue” (como queria Mao), por outro lado também não significa que não devemos apontar-lhe as mazelas. Enquanto houver política, podemos sempre nos esforçar para contribuir com aquela corrente que quer democratizar a política.

Isso posto, é claro que a política deveria ser a “arte da paz”, em um sentido, porém, mais profundo do que simplesmente aquele de evitar o desfecho violento dos conflitos. A “arte da paz” deveria ser entendida como uma espécie de “pazeamento” das relações, quer dizer, não apenas evitar a violência física, mas também outras formas de violência ou de constituição de inimizades que atentam contra o espírito comunitário (enfraquecendo a comunidade política), tais como: o clima adversarial e a disputa permanente; a luta incessante (que deriva indevidamente, da política como modo de regulação de conflitos, uma espécie de conflitocultismo, na base do “tudo é luta”) e a contínua construção de inimigos (políticos), própria da realpolitik; a procura paranóica de culpados pelos problemas (em vez da investigação das causas desses problemas); e, fundamentalmente, a imposição de restrições à liberdade (daí ser desejável que a política possa ser encarada também como uma “arte de promover a liberdade”). É importante observar que todas essas formas podem incidir em regimes formalmente democráticos, gerando permanentes conflitos de baixa intensidade dos quais resultam, via de regra, democracias com alto grau de antagonismo.

Para os gregos, por exemplo, o que foi praticado como política foi concebido como democracia e tudo o que não foi concebido como democracia foi praticado como guerra, ou seja, como atividade apolítica. Com base nos escritos de Hannah Arendt é possível articular uma argumentação convincente sobre isso.

A política (propriamente dita, ou seja aquela que é feita ex parte populis e que tem como fim a liberdade) deve ter sido ensaiada pelos seres humanos em várias circunstâncias pretéritas, mas só se afirmou como atividade reconhecida socialmente, por parte de coletividades humanas estáveis, a partir da experiência dos gregos. Nesse sentido, pode-se dizer que a política começou com os gregos e não por acaso coincidiu com o advento daquilo que os gregos e os pósteros resolveram chamar de democracia. Política e democracia são atividades coevas e reconhecer isso não é pouca coisa. Mas, além disso, política e democracia são coetâneas porque são a mesma atividade. Fazer política é, portanto, sinônimo de “fazer” democracia.

As investigações filosóficas de Hannah Arendt (1950-1959), publicadas postumamente, sobre a natureza da política, sobre o sentido da política e sobre a questão da guerra, reforçam a hipótese segundo a qual (“geneticamente”) o que foi praticado como política foi concebido como democracia e tudo o que não foi concebido como democracia foi praticado como guerra, ou seja, como atividade apolítica. Para os gregos, segundo ela, a guerra era uma atividade apolítica.

Em “A Questão da Guerra”, Arendt escreveu que

“No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira ‘coisa política’, ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não livres – em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como um símbolo de um peito divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação a outros Estados ou Cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘apolítica’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo. Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego” (1).

Ora, o exercício da conversação na praça é (um dos elementos fundantes da) democracia. Assim, quando guerreavam, os gregos se comportavam também de maneira ‘ademocrática’, quer dizer, ‘apolítica’. Em outras palavras, democracia e política estão conectadas por uma co-implicação, assim como seus contrários; ou seja: autocracia <=> guerra.

Com efeito, em carta datada de 7 de abril de 1959 ao editor Klaus Piper sobre o seu “Introdução à Política”, impublicado e jamais concluído, Hannah Arendt escreveu:

“Não sei se já havia lhe dito... que começo o livro com um capítulo detalhado sobre a questão da guerra. Não uma discussão sobre a situação atual, mas sim o que significa em geral a guerra para a política. Minha razão para assim iniciar foi bem simples: nós vivemos em um século de guerras e revoluções, e uma ‘Introdução à Política’ não pode começar bem com outra coisa que não seja aquilo através do que chegamos, enquanto contemporâneos, direto à política. Eu havia planejado isso originalmente enquanto introdução porque, a meu ver, guerras e revoluções estão fora do âmbito político no verdadeiro sentido. Elas estão sob o signo da força e não, como a política, sob o signo do poder” (2).

A rigor, não existia uma democracia grega, pois lá existiam atividades democráticas (que se exerciam por meio da conversação na ágora) e atividades autocráticas (que se exerciam por meio, por exemplo, da guerra com outros Estados e da preparação para a guerra e do ‘estado de guerra’ instalado internamente em face da guerra externa). Mas isso significa que, originariamente, o contrário da guerra não é a paz, mas a política.

Não há política possível em autocracias, a não ser aquela que se exerce no sentido de desconstituí-las, ou seja, que, ao se exercer, desconstituem-nas. Não há política possível na guerra, a menos aquela que substitui modos violentos de solução de conflitos por modos não-violentos e, portanto, desconstituem a guerra, quer dizer, que, ao regularem conflitos de modos não-violentos, tiram da guerra sua razão de ser ou impedem que se ache uma razão para guerrear. Por quê? Porque o sentido da política é a liberdade. Por isso não pode haver nenhuma política, stricto sensu, hobbesiana – na medida em que o fim da política, para Hobbes, é a ordem.

É verdade que essa abordagem reduz consideravelmente o escopo daquilo que convencionamos chamar de política. Mas se chamamos de política ao que não é, em última e irredutível instância, aquilo que a política é, introduzimos uma ambigüidade teórica incontornável porquanto radicada na origem mesma do nosso discurso e, simultaneamente, não conseguimos captar o que é próprio da política, o que só ela tem ou promove, a sua característica genética distintiva, vamos dizer assim.

Com efeito, a paz, definida pelo seu aparente oposto, como ausência de guerra, não pode ter um estatuto próprio em termos de teoria política (i. e., das formas e dos meios como se distribui o poder e se exerce a política, ou seja, do padrão predominante de organização e do modo predominante de regulação de conflitos) se, o que ocorre na paz, não for também o oposto do que ocorre na guerra. O conhecido lema “Se queres a paz prepara-te para a guerra”, gravado nos muros dos quartéis, diz tudo a esse respeito, ou seja, revela uma simetria não-contraditória, senão complementar, entre paz e guerra. Pois a preparação para a guerra significa que a sociedade, mesmo em tempos de paz, organiza-se para a guerra e para a instalação de um ‘estado de guerra’ – o que é contraditório com uma preparação para a paz. Uma preparação para a paz implicaria organizar a sociedade de forma tal que os padrões de organização e os modos de regulação favorecessem o exercício da liberdade, levando os seres humanos a estabelecer relações de não-subordinação e de não-violência na solução dos conflitos. Ora, isso tem um nome: chama-se democracia – a única maneira, não voltada para a guerra, pela qual pode se efetivar a política.

Não é por acaso que não existe em nossos vocabulários o verbo “pazear”, mas apenas o verbo guerrear, pela mesma razão que não existe ou não é empregado o verbo “politicar” (a não ser em sentido pejorativo). A razão é, essencialmente, a inexistência – a não ser pontual e fugaz – de democracia como ‘estado de paz’. “Politicar”, em um sentido não-pejorativo, é sinônimo de “pazear”, preparar-se para a paz. E não há outra maneira de preparar-se para a paz a não ser exercitar a política, ou seja, “fazer” democracia ou “democratizar”. Eis porque deve-se afirmar, nesse sentido, que a democracia é sinônimo de política e antônimo de guerra.

Pode-se argumentar que tal digressão filosófica está circunscrita a uma experiência fundante (a dos gregos) ou a uma interpretação particular dessa experiência, e que desconhece as formas históricas pelas quais as sociedades realmente existentes foram tentando materializar o ideal de liberdade como autonomia que, segundo Rousseau, constitui o que chamamos de democracia.

Mas historicizar nesse nível o conceito de democracia é, antes de tudo, desconhecer que a democracia foi uma invenção arbitrária dos seres humanos, uma “obra de arte”, gratuita, algo que os humanos poderiam inventar em virtude de possuírem, como argumenta Maturana (1993), uma emocionalidade cooperativa, mas não algo que eles teriam que inventar necessariamente em virtude de qualquer lei, determinação ou condicionamento de natureza histórica (3).

O mundo social não evolui, a história não tem nenhum sentido e as sociedades não progridem de formas menos democráticas para formas mais democráticas a não ser enquanto se permite a ampliação do exercício da liberdade humana. Nesse sentido, o que houve, na maior parte do tempo, foi regressão, e não progressão, porquanto depois da invenção democrática dos gregos em geral experimentamos arranjos sociais que restringiram, em vez de ampliar, o raio da esfera da liberdade humana e isso há até bem pouco.

A idéia de que a democracia é uma obra inacabável porque é resultado de um suposto processo histórico-civilizatório cuja marcha é interminável é uma tolice. A democracia é uma obra inacabável à medida que a expansão da liberdade humana for ilimitável. Somente nesse sentido pode-se falar de uma “evolução” da democracia, ainda que tenhamos observado freqüentemente na história exemplos de “involução” da democracia. Assim, por exemplo, os gregos escravagistas podiam ter mais democracia – entre os seus homens livres – do que os ingleses capitalistas ou do que os russos socialistas (entre os seus “homens livres”), dois mil anos depois. É o que veremos nos próximos capítulos.


Indicações de leitura

É importante reler o texto de Hannah Arendt “O sentido da política” (sobretudo o Fragmento 3b), contido na coletânea compilada por Ursula Ludz (1992) e já indicada aqui mais de uma vez.

Passemos então àquelas leituras mais heterodoxas, que jamais seriam indicadas pelos cientistas políticos em suas academias. Em primeiro lugar é importante ler o Mahatma Gandhi e o que escreveram sobre ele até entender a essência do Satyagraha. Talvez seja bom começar lendo a autobiografia (intitulada “Uma autobiografia”) escrita em 1925 e publicada no Brasil sob o título Minha vida e minhas experiências com a verdade (São Paulo: Palas Athena, 1999). No início deste século (2002), já existiam 8.800 livros sobre Gandhi. Pode-se efetuar uma busca acessando, por exemplo, o site da GandhiServe Foundation: www.gandhiserve.org.

Mais duas indicações desconcertantes: O Tao da Paz, de Diane Dreher (Rio de Janeiro: Campus, 1990) que parece estar esgotado, no Brasil e também nos EUA e a excelente coletânea de Connie Zweig e Jeremiah Abrams (1991), intitulada Meeting the shadow: the hidden power of the dark side of human nature (Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994), sobretudo os artigos das partes 7 e 8, mas em especial o capítulo 40, composto pelo texto de Andrew Bard Schmookler (1988), “O reconhecimento de nossa cisão interior” (excertos de Out of weakness. New York: Bantam, 1988); o capítulo 41, “O criador de inimigos”, de Sam Keen (1986) (Faces of the enemy. New York: Harper Collins, 1986); e o capítulo 48, “Quem são os criminosos”, de Jerry Fjerkenstad (1990) (composto a partir do ensaio Alchemy and criminality. Mineapolis: Inroads, 1991). Na verdade, o livro todo organizado por Zweig e Abrams deveria ser lido, atentamente e várias vezes. Feliz ou infelizmente, será necessário ler esses textos para entender as razões da indicação.


Notas
(1) Arendt, Hannah (c. 1950). O que é política? (Frags. das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
(2) Idem.
(3) Maturana, Humberto & Verden-Zöller, Gerda (1993). Amor y Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia. Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997.

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