20080518

CAPÍTULO F | LADO

... que a democracia é uma questão de ‘modo’ e não uma questão de ‘lado’;


Em política, o que é avaliável eticamente não é estar em uma posição ou na posição oposta, mas o modo de resolver o conflito gerado entre opiniões circunstancialmente confrontantes.

Embora Jung tenha afirmado que “vivemos em uma época em que nos surge a percepção de que o povo que vive no outro lado da montanha não é composto unicamente por demônios ruivos responsáveis por todo o mal que existe no nosso lado da montanha”, a política realmente existente ainda é concebida e praticada como uma questão de ‘lado’ e não como uma questão de ‘modo’.

De todas as caracterizações operativas da política, a distinção entre “esquerda” e “direita” foi a que mais contribuiu para a apreensão da política como questão de ‘lado’, dificultando a compreensão e a prática da democracia.

“Esquerda” e “direita” são noções que remontam ao final do século 18. E que se consolidaram no vocabulário e nas teorias políticas a partir da ideologia do Partido Bolchevique, isto é, das idéias adversariais da fração majoritária do Partido Operário Social-Democrata Russo que dirigiu a revolução de outubro de 1917. Essa fração, constituindo uma ala “esquerda”, evocava a distribuição espacial dos membros na velha Assembléia da Revolução Francesa.

Todavia, não é sem razão que conceitos originalmente geométricos tenham adquirido tão forte conteúdo político, ou melhor, político-ideológico. O lado em que se sentavam os membros de uma assembléia passou a indicar com que lado da sociedade eles estavam. A topografia do salão de reuniões refletia uma “ideologia tomográfica” da própria sociedade. Tal como eu posso, sempre, dividir – more geometrico – uma sala (em geral um quadrilátero ou polígono) em dois lados, também posso dividir – por força de ideologia – em dois lados o espaço social.

A “esquerda”, muito mais do que a “direita”, foi responsável pela difusão dessa ideologia, porquanto tentou urdir uma “ética” sobre ela, instituindo-a como critério axiológico-normativo. De fato, toda “esquerda” está constituída sobre a idéia de que existe um lado certo: o “seu lado”. Ser “de esquerda” é estar ao lado dos explorados, oprimidos e dominados contra o outro lado: o lado dos exploradores, opressores e dominadores. É assim que, durante muito tempo, acreditou-se que o fundamental, em política, era estar do lado certo.

Entretanto, na medida em que se multiplicam resultados objetivos reprováveis da atuação da “direita” (como os genocídios de Hitler) e da “esquerda” (como os genocídios de Mao), tal ideologia vai perdendo verossimilhança. E vai ficando claro que, do ponto de vista ético, não pode existir, em política, um lado certo. E na medida em que, em política, ninguém está, a priori, com a verdade, ninguém também pode, a priori, ser aprovado eticamente pelo fato de estar situado em um suposto lado certo. Tanto Hitler quanto Mao acreditavam estar do lado certo. O próprio bolchevique (majoritário) Lênin – responsável, aliás, pela difusão da “ideologia científica” do lado certo: o chamado marxismo-leninismo – não podia estar eticamente correto ao introduzir, contra a opinião do menchevique (minoritário) Martov, a pena de morte no Estado pós-revolucionário. Trotski, teórico de uma “ética de lado” (tanto que escreveu o texto: “A nossa moral e a deles”), não pode ser eticamente aprovado por massacrar os sublevados de Kronstadt.

A “esquerda” caracterizou a “direita” como necrófila. Mas inúmeras barbaridades também foram cometidas pela “esquerda” no século passado (em volume, aliás, incomparavelmente maior), sob a justificativa da sua necessidade para o triunfo da revolução socialista e para a instauração do futuro reino da liberdade (e da abundância). Porém se os fins justificam os meios, então já não se pode falar de ética.

Passadas tantas catástrofes – inclusive aquela que sepultou o “socialismo real” – só alguém muito impregnado da ideologia do lado certo ainda acredita que a sociedade humana possa ser dividida em dois lados: um com a verdade e o bem; o outro com o erro e o mal. Por incrível que pareça, entretanto, ainda são muitos os que pensam assim.

Uma alfabetização democrática deveria mostrar que, em política, o que é avaliável eticamente não é estar em uma posição ou na posição oposta, mas o modo de resolver o conflito gerado entre opiniões circunstancialmente confrontantes. Pois, afinal, a política é um modo de resolver conflitos. Do ponto de vista democrático, não pode ser aprovado nenhum modo que impeça o alargamento da liberdade, atente contra a vida e a integridade física ou psíquica ou inflija voluntariamente sofrimentos aos semelhantes, como percebeu Agnes Heller (1982) ao argumentar sobre a impossibilidade de uma ética marxista, quer dizer, de uma “ética de lado”.

Ademais, se ninguém, enquanto pólo de um conflito, possui de antemão a verdade, não se trata, na política democrática, de convencer os outros de nossas crenças, de fabricar ideologias para que os demais acreditem nelas. Pelo contrário, trata-se de promover a “polinização” mútua das idéias, viabilizar o trânsito do pensamento em vez de exigir alinhamentos de posições, para que da interação dos contrários (e dos diferentes em geral) possa emergir a construção de novas idéias e práticas.

Portanto, na medida em que a política vai se desideologizando, ou seja, deixando de ser uma questão de lado e se democratizando, isto é, passando a ser uma questão de modo, também vão se desconstituindo as bases axiológico-normativas que impulsionavam alguém a ser “de esquerda” ou, simetricamente, “de direita”. Trata-se de referências tópicas já ultrapassadas pela compreensão de que, em uma sociedade cada vez mais complexa (com mais pluralidade e diversidade) na qual os lados são múltiplos e as diferenças variadas e variáveis, não tem mais cabimento constituir forças políticas sobre a base de que existem agentes, de um lado da sociedade, cujo movimento contra o outro lado – se resultando na sua prevalência política, quer pela força, quer pela hegemonia de suas idéias – cria a condição para a transformação de toda a sociedade.

Tal ideologia fundamentava-se originalmente na estranha “teoria” segundo a qual existia um grupo social cujos supostos “interesses históricos”, uma vez satisfeitos, inaugurariam uma era de liberdade e abundância para toda a sociedade humana. “Teoria” que, no fundo, era uma crença, mítica, de que havia uma classe social cujos particularismos, uma vez realizados, se universalizariam. E que, portanto, o critério último que deveria definir a política era estar ao lado dessa classe, que recebeu da própria história a missão de transformar a realidade social desigualitária, mas que, para tanto, precisaria tornar-se hegemônica na sociedade.

Os que continuam insistindo nessas idéias revelam um certo pendor para o fundamentalismo e, inevitavelmente, para a autocracia. É o caso, por exemplo, dos que continuam tentando salvaguardar o patrimônio da “esquerda”, como fiéis cavaleiros da tradição marxista-leninista, os quais não têm mais razões filosófico-sociológicas consistentes a seu favor, mas apenas uma herança histórico-antropológica a que não sabem bem como renunciar sem perder o sentido da própria vida.

Sim, apesar do esforço mais recente de Bobbio (1994) para esclarecer as razões da distinção entre “esq uerda” e “direita” como uma distinção tipicamente política (coisa que ela não pode ser totalmente, exigindo sempre algum “doping” ideológico), tal distinção reforça idéias autocráticas, dificultando a apreensão – e a prática – da democracia como modo pazeante de regulação de conflitos, como veremos no próximo capítulo (1).


Indicações de leitura

Para não sermos acusados de ignorância, é bom passar os olhos em duas referências contemporâneas do debate sobre as noções de ‘direita’ e ‘esquerda’: Eric Hobsbawm: A Era dos Extremos: o breve Século 20 (1994) e Norberto Bobbio: Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política (1994). Também é interessante dar uma espiada na entrevista concedida por Hobsbawm a Otávio Dias (publicada na Folha de São Paulo: 30/07/95; pp. 5-7).

Contudo, vale a pena investir mais tempo em Agnes Heller: “A herança da ética marxiana” (1982) in Hobsbawm, Eric et all. (orgs.) (1982). História do Marxismo (volume 12). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.


Nota
(1) Bobbio, Norberto (1994). Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Unesp, 1995.

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