20080518

APRESENTAÇÃO

“The fundamental principle of democracy is that the ends of freedom and individuality for all can be attained only by means that accord with those ends... [but] There is no opposition in standing for liberal democratic means combined with ends that are socially radical”.

John Dewey (1937) inDemocracy is radical”.


Nosso analfabetismo democrático

Nada ou quase nada aprendemos de democracia na infância ou na juventude, seja em casa, nas brincadeiras de rua com os amigos, na escola, na igreja, nas associações juvenis ou no esporte. Quando ficamos adultos, também não temos suficientes oportunidades de aprender e praticar a democracia no quartel, na universidade, no trabalho, nas entidades representativas ou em outras organizações da sociedade civil de que participamos.

Até o mundo político – incluindo os políticos tradicionais e seus partidos e as instituições públicas, como os parlamentos e os governos – é apenas semi-alfabetizado em termos democráticos; ou seja, dizendo de modo inverso, o mundo político é composto por semi-analfabetos democráticos. Quem tiver alguma dúvida, faça uma pesquisa tomando como universo as direções partidárias, o Congresso, as Assembléias Legislativas, as Câmaras de Vereadores e os órgãos públicos dos três níveis de governo, com perguntas simples sobre os pressupostos, os princípios, o significado estratégico e o valor da democracia: garanto que os resultados serão impublicáveis.

Essa realidade decepcionante pode ser explicada. A democracia não é uma coisa “natural” no mundo em que vivemos. Apesar das declarações de amor à democracia expressadas por políticos de todos os matizes, a palavra foi esvaziada de seu conteúdo. Tais declarações não refletem uma verdadeira conversão às idéias e às práticas democráticas, pois aderir realmente à democracia não é algo fácil: é preciso remar contra a corrente, contrariar a cultura política estabelecida e, não raro, negar o senso comum.

A democracia é uma brecha – instável – que foi aberta nos sistemas míticos, sacerdotais, hierárquicos e autocráticos aos quais estivemos submetidos nos últimos seis mil anos.

Nesse sentido, não há nada mais subversivo que a democracia. Ela é uma insubordinação contra o poder vertical, entendido como o poder de obstruir, separar e excluir, aquele poder que se estrutura instalando centralizações na rede social para tornar seus agentes capazes de mandar alguém fazer alguma coisa contra sua vontade.

O fato de, até agora, a democracia (como regime político ou forma de administração do Estado) ter sido experimentada - em algumas localidades - em apenas 7% da nossa história (durante 96 minutos, se tomarmos como referência 24 horas = 6 milênios), explica, pelo menos em parte, por que nossa formação democrática é ainda tão incipiente. Sim, desde que foi organizado o primeiro sistema político de poder vertical estável – provavelmente em alguma Cidade-Estado-Templo da antiga Mesopotâmia, talvez em Kish, na Suméria, por volta do ano 3.600 antes da Era Comum – tivemos apenas frágeis e fugazes experiências localizadas de democracia. De lá para cá, as diversas formas de Estado que se sucederam, as instituições públicas, as empresas e as demais organizações privadas da sociedade civil e, inclusive, as tradições espirituais – para não falar das ordens militares e religiosas – foram, em grande parte, autocráticas, não democráticas. Não é de se estranhar que sejam tão altos nossos índices de analfabetismo democrático.


É possível uma alfabetização democrática?

Somos menos analfabetos democráticos em relação à compreensão do funcionamento formal dos nossos atuais sistemas representativos do que em relação à democracia como modo de regulação de conflitos no cotidiano. Até conseguimos entender razoavelmente a democracia como sistema de governo, mas, de modo geral, não admitimos e não praticamos – como queria John Dewey – a democracia como modo de vida, no dia-a-dia, na base da sociedade e nas organizações governamentais ou não-governamentais de que participamos.

Ocorre que o conceito de democracia pode ser tomado em dois sentidos: em sentido “fraco” ou em sentido “forte”. No sentido “fraco” (e pleno) do conceito, democracia se refere atualmente a um tipo de regime – na acepção de sistema de governo ou forma política de administração do Estado – em que os governantes são escolhidos pelos governados e que atende aos seguintes requisitos: 1) liberdade de ir e vir e de organização social e política; 2) liberdade de expressão e crença (incluindo hoje o direito de pesquisar, receber e transmitir informações e idéias sem interferência por qualquer meio, inclusive no ciberespaço); 3) liberdade de imprensa stricto sensu e lato sensu (existência de diversas fontes alternativas de informação); 4) publicidade (ou seja, transparência capaz de ensejar uma real accountability) dos atos do governo e inexistência de segredo dos negócios de Estado quando não estejam envolvidas ameaças à segurança da sociedade democrática e ao bem-estar dos cidadãos; 5) direito de voto para escolher representantes (legislativos e executivos) pelo sistema universal, direto e secreto; 6) condição legal de votar implicando condição de ser votado; 7) eleições livres, periódicas e isentas (limpas); 8) efetiva possibilidade de alternância no poder entre situação e oposição e “aceitabilidade da derrota”; 9) instituições estáveis, capazes de cumprir papéis democraticamente estabelecidos em lei e protegidas de influências políticas indevidas do governo; 10) legitimidade: para ser considerado legítimo o ator político individual ou coletivo deve respeitar – sem tentar falsificar ou manipular – o conjunto de regras que emanam dos requisitos acima mencionados, não lhe sendo facultado modificá-las ou delas se esquivar com base no argumento de que conta, para tanto, com o apoio da maioria da população, mesmo diante de evidências ou provas de seus altos índices de popularidade ou, ainda, com base na crença de que possui a “proposta correta” ou a “ideologia verdadeira” para alcançar qualquer tipo de utopia, seja ela o império milenar dos seres superiores ou escolhidos, o reino da liberdade ou da abundância para todos, para redimir a humanidade ou parte dela ou para salvar de algum modo a espécie humana. Esse é o sentido “fraco” do conceito de democracia, em sua concepção máxima ou plena.

No sentido “forte” do conceito, porém, democracia é mais do que isso, mas não propriamente melhor do que isso porquanto não constitui uma alternativa ou uma realidade comparável à democracia em seu sentido “fraco” (como sistema de governo). John Dewey (1939), por exemplo, no discurso “Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente”, em que lançou sua derradeira contribuição às bases de uma nova teoria normativa da democracia que poderíamos chamar de democracia cooperativa, deixa claro que estava tomando o conceito em seu sentido “forte”. A democracia, para Dewey, não se refere – nem apenas, nem principalmente – ao funcionamento das instituições políticas, mas é “um modo de vida” baseado em uma aposta “nas possibilidades da natureza humana”, no “homem comum”, como ele diz, “nas atitudes que os seres humanos revelam em suas mútuas relações, em todos os acontecimentos da vida cotidiana”. Ainda segundo Dewey, a democracia é uma aposta generosa “na capacidade de todas as pessoas para dirigir sua própria vida, livre de toda coerção e imposição por parte dos demais, sempre que estejam dadas as devidas condições” (1). Esse é sentido “forte” do conceito.

Com efeito, em “O Público e seus problemas”, John Dewey (1927) deixou claro que existe uma “distinção entre a democracia como uma idéia de vida social e a democracia política como um sistema de governo. A idéia permanece estéril e vazia sempre que não se encarne nas relações humanas. Porém na discussão há que distinguí-las. A idéia de democracia é uma idéia mais ampla e mais completa do que se possa exemplificar no Estado, ainda no melhor dos casos. Para que se realize, deve afetar todos os modos de associação humana, a família, a escola, a indústria, a religião. Inclusive no que se refere às medidas políticas, as instituições governamentais não são senão um mecanismo para proporcionar a essa idéia canais de atuação efetiva...” (2).

Isso não significa que a democracia, em seu sentido “fraco”, seja menos importante que em seu sentido “forte”, porquanto a condição para que a democracia em seu sentido “forte” possa se realizar é a existência da democracia em seu sentido “fraco”. Atualmente, onde não existe um sistema representativo funcionando, em geral também não há práticas realmente participativas, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão, que possam ser consideradas como democráticas. Em outras palavras, a chamada democracia liberal é condição para o exercício de formas inovadoras de democracia radical, como, aliás, o próprio Dewey já havia reconhecido, há mais de setenta anos, quando afirmou que “o princípio fundamental da democracia consiste em que os fins da liberdade e da autonomia para todo indivíduo somente podem ser alcançados empregando-se meios condizentes com esses fins... [mas] não há contradição alguma entre a busca de meios liberais e democráticos combinada com a defesa de fins socialmente radicais” (3).

Por outro lado, como veremos na introdução deste livro, democracia (no sentido “forte” do conceito) não é um regime determinado, não é um modelo aplicável a várias circunstâncias, mas um movimento ou uma atitude constante de desconstituição de autocracia.

Não estamos condenados a conviver eternamente com as formas atuais da democracia representativa, porém não podemos aboli-las em nome de novas formas (supostamente mais participativas) que não assegurem o essencial, o coração mesmo da idéia: a aceitação da legitimidade do outro, a liberdade e a valorização da opinião e o exercício da conversação no espaço público.

Não há nada que impeça os seres humanos de inventar uma nova política democrática, a não ser a sua consciência colonizada por idéias autocráticas. Não existem as tais condições estruturais objetivas para a adoção da democracia, como se supôs no entorno dos anos 70 do século passado. O prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen (1999), matou a charada quando afirmou que a questão não é a de saber se um dado país está preparado para a democracia, mas, antes, de partir da idéia de que qualquer país se prepara por meio da democracia. A democracia é uma opção. Além disso, a idéia de democracia pode ser materializada de diferentes maneiras (4).

Se a democracia não pudesse ser reinventada, ela não poderia ter sido inventada. Ao dizer que a política é o que é, não havendo condições de mudar sua natureza (a relação amigo-inimigo), o realismo político está, na verdade, inoculando uma vacina contra as mudanças políticas democratizantes: está dizendo que a política será sempre o que foi e sempre como foi; ou como se avalia que sempre foi. Ora, na maior parte do tempo a política não foi democratizante: apesar da onda democrática mundial do último século, nos últimos seis milênios a democracia não passou de uma experiência localizada, frágil e fugaz. Depois da sua invenção pelos gregos, a tendência que vigorou amplamente foi a da autocratização e não a da democratização. Por isso teve razão mais uma vez Amartya Sen (1999) quando, perguntado sobre qual teria sido o acontecimento mais importante do século 20, respondeu de pronto: a emergência da democracia.

Com efeito, a democracia está avançando, apesar de tudo (ainda que no sentido “fraco” do conceito, mas que é, como vimos, condição para que ela possa ser ensaiada em seu sentido “forte”). No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, apenas 22 países apresentavam formas de governo democráticas, sendo que todos os demais ainda estavam submetidos a governos totalitários ou autoritários – no sentido de não preencherem aqueles dez requisitos apresentados anteriormente. Sessenta anos depois (em 2005), estimou-se que 117 países eram democráticos, pelo menos formalmente, atendendo a um (a eletividade) ou a mais de um dos dez requisitos listados aqui, embora não mais que 60 países pudessem ser considerados plenamente democráticos, tomando-se como tais os que atendiam a totalidade ou a maior parte dos referidos requisitos. Tudo isso, é claro, no sentido “fraco” do conceito, pois que em seu sentido “forte”, como veremos mais adiante, a democracia não se aplica propriamente a países – Estados-nações – e sim à sociedades, ou melhor, a comunidades (5).

O problema, portanto, não parece estar em uma dificuldade maior de aceitação formal da idéia de democracia como sistema de governo, senão nas idéias indigentes que temos de democracia, como: “democracia é votar para escolher quem vai mandar” ou “democracia é todo mundo decidindo sobre tudo”.

Por outro lado, ainda é muito pequeno o número de pessoas que compreende a democracia como um pacto de convivência baseado na aceitação da legitimidade do outro, na liberdade e na valorização da opinião e na conversação realizada no espaço público, que tem como objetivo resolver, pacificamente, os dilemas da ação coletiva de modo a privilegiar a construção progressiva de consensos entre posições diferentes ou conflitantes, transformando, assim, inimizade política em amizade política.

Geralmente as pessoas tendem a achar que ‘democracia é eleição’, que ‘democracia é a prevalência da vontade da maioria’, que ‘democracia é a lei do mais forte’ (daquele que tem maioria, sendo, no caso, mais forte, o competidor que tem mais votos) ou, ainda, que ‘democracia é a regra do jogo estabelecido para verificar quem tem mais audiência e, assim, entregar os cargos públicos representativos ao detentor do maior índice de popularidade’.

Nas consultas informais que tenho realizado nas turmas de um curso de formação política que ministro, a partir de 2007, para centenas de alunos, constatei que a maioria dos “entrevistados” não considera inaceitáveis afirmações como: ‘democracia é o regime da maioria’ ou ‘democracia é fazer a vontade do povo’. Boa parte desses alunos considera que ‘os votos da maioria da população estão acima das decisões das instituições democráticas (inclusive dos julgamentos dos tribunais) quando tais instituições representam apenas as minorias (ou as elites)’. Parcela não desprezível dos consultados acredita que ‘para um governo ser democrático basta ter sido eleito sem fraude pela maioria da população’, que ‘quem tem maioria tem sempre legitimidade’ ou, ainda, que ‘um grande líder identificado com o povo pode fazer mais do que instituições repletas de políticos controlados pelas elites’. Isso para não falar da convicção – generalizada, conquanto nem sempre expressa – de que ‘não adianta muito ter democracia se o povo passa fome’ ou de que ‘não adianta ter democracia política se não for reduzida a desigualdade social’.

Diante desse quadro, seria pouco razoável esperar que as pessoas compreendessem as relações existentes entre democracia e sustentabilidade e se comportassem de modo condizente com tal compreensão. Mas seria demais esperar que, pelo menos, as pessoas compreendessem que a democracia é o valor principal da vida pública e que tudo – qualquer evento, qualquer proposta – deve ser avaliado, medido e pesado, a partir da seguinte pergunta: isso ajuda ou atrapalha o avanço do processo de democratização da sociedade? Se chegássemos a isso, creio que teríamos alcançado o objetivo da alfabetização democrática.

As condições para tal, entretanto, não têm sido, na história recente, particularmente favoráveis. No Brasil, em particular, não tivemos experiência suficiente de democracia, nem muitas oportunidades para aprender o que é democracia. Nem a chamada direita, nem as esquerdas que lutaram contra a ditadura militar (1964-1984) tiveram aprendizagem de democracia. Duas gerações inteiras de brasileiros (ou, se quisermos, três: dos nascidos entre 1945 e 1985) aprenderam que era preciso recusar a ditadura, mas não aprenderam o que era necessário para construir a democracia, nem mesmo no sentido “fraco” do conceito. Os que nasceram nas décadas de 1940 e 1950 e entraram na universidade nos anos 60 e 70, foram induzidos a rejeitar o imperialismo norte-americano e a admirar a União Soviética, a China, a Albânia ou Cuba – mas nada de democracia. Com a queda do Muro de Berlim, na ausência de modelos para imitar, os que nasceram no início dos anos 70 e entraram na universidade a partir de 1990 foram "educados" para rejeitar o novo satã chamado neoliberalismo – mas, igualmente, nada de democracia.

Eu mesmo, que combati o regime militar que se instalou no Brasil em 1964, não tinha a menor idéia da democracia como valor, nada sabia de seus pressupostos e sequer imaginava suas relações intrínsecas com os padrões de organização em rede e com as mudanças sociais que hoje interpretamos como desenvolvimento ou sustentabilidade. Se tivéssemos vencido o combate que movemos contra o regime dos generais e coronéis que deram o golpe de 64, provavelmente não teríamos assistido à transição democrática de 1984-1989 e estaríamos vivendo hoje em um regime mais autocrático do que o atual (instalado por nós, por mim inclusive!). Sim, é fato: nós não estávamos convertidos à democracia.

De lá para cá, o quadro melhorou sensivelmente. Mas nos últimos anos, em especial, parece estar havendo um retrocesso considerável em relação às concepções e às práticas de democracia. Isso ocorre não apenas no Brasil, porém com mais intensidade ainda em outros países da América Latina (como a Venezuela, a Bolívia, o Equador e a Nicarágua). Por outro lado, não se vê reação democrática proporcional às ameaças à democracia que estão em curso no mundo atual.


Um movimento por uma Alfabetização Democrática

Já vamos findando a primeira década deste século e penso que chegou o momento de iniciar um movimento por uma “alfabetização democrática”. Essa idéia me ocorreu agora, dez anos depois de ler os escritos de Fritjof Capra sobre a necessidade de uma “Alfabetização Ecológica”.

Segundo Capra (1996), em “A teia da vida”, “reconectar-se com a teia da vida significa construir, nutrir e educar comunidades sustentáveis, nas quais podemos satisfazer nossas aspirações e nossas necessidades sem diminuir as chances das gerações futuras. Para realizar essa tarefa, podemos aprender valiosas lições extraídas do estudo dos ecossistemas, que são comunidades sustentáveis de plantas, de animais e de microorganismos. Para compreender essas lições, precisamos aprender os princípios básicos da ecologia. Precisamos nos tornar, por assim dizer, ecologicamente alfabetizados. Ser ecologicamente alfabetizado ou “eco-alfabetizado”, significa entender os princípios de organização das comunidades ecológicas (ecossistemas) e usar esses princípios para criar comunidades humanas sustentáveis” (6).

Capra parece ter razão. Diante das ameaças crescentes ao meio ambiente e da acelerada destruição da biodiversidade do planeta e, sobretudo agora, face à tragédia anunciada do aquecimento global, (quase) ninguém ousaria desqualificar suas preocupações.

Aliás, apenas uma década depois de ter apresentado a idéia, pode-se dizer que Capra já teve sucesso (pelo menos parcialmente) em seu empreendimento. A idéia de uma alfabetização ecológica vem se disseminando em todos os lugares. De tal modo foi incorporada à preocupação com o meio ambiente, inclusive na educação escolar fundamental, que nossos filhos e netos, não raro, são os primeiros a chamar nossa atenção para comportamentos, por assim dizer, não-sustentáveis do ponto de vista ecológico ou ambiental.

No entanto, o mesmo não ocorre em relação a outro campo de ação coletiva que interfere decisivamente na sustentabilidade das sociedades humanas: a política democrática.

Já existem milhares de organizações ambientalistas, defensoras da ecologia, mas podem ser contadas nos dedos organizações que se dediquem a divulgar e a defender a democracia (sobretudo no sentido “forte” do conceito). Se existe o embrião de uma educação voltada à ecologia, ainda não há nada como uma educação voltada para a democracia. As populações são praticamente analfabetas (ou semi-analfabetas) no que tange à compreensão dos pressupostos, dos princípios, do significado estratégico e do valor da democracia. Recentes pesquisas de opinião sobre a importância da democracia (sobretudo nos países da América Latina, como as que vêm sendo realizadas pelo Latinobarômetro) revelam que a maioria das pessoas não encontra qualquer razão para afirmar que a democracia seja preferível a outros regimes ou a outros modos de regulação de conflitos.

Somos capazes de entender e tentar orientar nossas ações pelos seis princípios básicos da ecologia propostos por Capra ‘interdependência’, ‘reciclagem’, ‘parceria’, ‘flexibilidade’ e ‘diversidade’: e a ‘sustentabilidade’ (ambiental) como conseqüência de todos eles – mas ainda não somos capazes de absorver a ‘aceitação da legitimidade do outro’, a ‘liberdade e a valorização da opinião’ e o ‘exercício da conversação na praça’ como princípios capazes de orientar a regulação dos conflitos em que nos envolvemos, norteando por eles a nossa prática política cotidiana. E, muito menos ainda, somos capazes de perceber as relações intrínsecas entre democracia e desenvolvimento ou os nexos conotativos entre democracia e sustentabilidade.

Sim, do ponto de vista da sustentabilidade global – do meio ambiente planetário e das sociedades humanas – democracia é tão importante quanto ecologia. Mas nem os próprios ecologistas parecem compreender isso. Muito alfabetizados em termos ecológicos, não o são tanto assim em termos democráticos.

Vou dar um exemplo: enquanto todos estão lendo o interessante livro de Al Gore (2006), "Uma verdade inconveniente: o que devemos saber (e fazer) sobre o aquecimento global", fui reler o já antigo "Gaia: cura para um planeta doente", de James Lovelock (1991, reeditado em 2004). Trata-se de um texto científico (polêmico, controverso) de fronteira. A tese de Lovelock (que nada tem a ver com o novo "fundamentalismo verde") é a de que uma parte de Gaia, composta pelo "restante da criação... moverá inconscientemente a própria Terra para um novo estado, um estado no qual nós, seres humanos, poderemos não mais ser bem-vindos" (7).

Sou um admirador de Lovelock. Sua hipótese Gaia (em co-autoria com Lynn Margulis) – a de que "a vida ou a biosfera regula ou mantém o clima e a composição atmosférica em um nível ideal para si mesma" – tem um enorme potencial heurístico, embora alguns tenham dela retirado conclusões que não podem ser autorizadas pela ciência (e. g. todas aquelas que atribuem um propósito à auto-regulação planetária). Mas ainda estou em dúvida sobre os juízos políticos que Lovelock deriva de uma espécie de determinismo biológico fatal. É assim que, em um prefácio de 2004, ele faz um apelo a todos os ambientalistas "para que ponham de lado os seus temores sem fundamento [por exemplo, em relação ao progresso científico-técnico na sintetização de alimentos ou na utilização da energia nuclear] e a sua obsessão exclusiva em relação aos direitos humanos". Essa é uma conclusão, digamos, no mínimo temerária, em um tipo de civilização como a que vivemos. "Sejamos corajosos o bastante [exorta Lovelock] para reconhecer que a verdadeira ameaça provém dos danos que causamos ao ser vivo que é a Terra, da qual fazemos parte, e que é realmente o nosso lar" (8). Sim, mas essa não é a única "verdadeira ameaça"; estamos diante de várias outras ameaças, que não podem ser consideradas como não tão verdadeiras.

Lovelock endossa as palavras do seu cientista-chefe, Sir David King, que declarou, no início de 2004, nos Estados Unidos, "que o aquecimento global é uma ameaça maior do que o terrorismo". Talvez até seja, mas isso não pode desviar nossa atenção das ameaças à democracia e ao desenvolvimento humano e social sustentável que são tão verdadeiras e tão presentes quanto a ameaça do aquecimento do planeta.

Não é uma questão de comparar os riscos. É claro que o desaparecimento da espécie humana anulará todas as preocupações humanas. Mas de certo modo, algum dia, nossa espécie desaparecerá mesmo: pelo menos neste planeta, com a extinção do sol; ou neste universo, com o Big Crunch. No entanto, penso que estamos construindo um outro mundo, um mundo humano, que tem como base o mundo natural (Gaia, na visão de Lovelock) mas que não é conseqüência do mundo natural. A tentativa humana de humanizar o mundo (ou de humanizar a "alma do mundo" por meio do ‘social’) é uma espécie de segunda criação... Para quem pensa assim, a vida é um valor principal, mas não o único: os padrões de convivência social, além da vida (biológica), também constituem valores inegociáveis, quero dizer, valores que não podem ser trocados pelo primeiro.

Em outras palavras, não podemos esquecer tudo - sobretudo a democracia e o desenvolvimento humano e social - para nos concentrarmos agora somente na tentativa de retardar o desaparecimento biológico da espécie. Não vale ser salvo da destruição prematura para viver em um mundo desumanizante, em que as sociedades humanas – no que têm de mais promissor: a sua capacidade de humanizar o mundo – não serão sustentáveis. Assim, penso que temos que cuidar das duas coisas, simultaneamente.

Ocorre que não cuidamos suficientemente da democracia. Antes de qualquer coisa porque continuamos analfabetos em termos democráticos. Então este “Alfabetização Democrática” é sobre isso: sobre a necessidade de compreender melhor a democracia para cuidar melhor da democracia.

Augusto de Franco, Inverno de 2007.

Notas
(1) Cf. Dewey, John (1939). “Creative Democracy: the task before us”in The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press, 1998.
(2) Cf. Dewey, John (1927). The Public and its Problems. Chicago: Gataway Books, 1946 (existe edição em espanhol: La opinión pública y sus problemas. Madrid: Morata, 2004).
(3) CF. Dewey, John (1937). “Democracy is radical” in The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press, 1998.
(4) Cf. Sen, Amartya (1999). “Democracy as a Universal Value”, Journal of Democracy: 10 (3); pp. 3-17.
(5) Segundo as estimativas de Robert Dahl (1998), em 1860, do total de 37 países apenas um era democrático, enquanto, em 1995, de 192 países, 65 poderiam ser considerados democráticos (tomando-se sobretudo o critério da existência de sufrágio masculino ou pleno sufrágio). Em termos percentuais, pulamos de 2,4% para 33,8%. Mas tal crescimento não foi sempre linear. De 1860 a 1990, contando por décadas, o número de países democráticos (segundo o critério “fraco”) aumentou, no período de um século e meio, segundo a progressão: 1: 2: 3: 4: 6: 8: 15: 22: 19: 25: 36: 40: 37: 65. Note-se que houve regressão do número absoluto de democracias como regimes eleitorais, na década de 1940 em relação à década de 1930 e na década de 1980 em relação à década de 1970. Mas em termos de porcentagens, em relação ao número total de países, poderíamos estabelecer uma relação, a partir da tabela de Dahl, como a seguinte: 1860 (2,7%); 1870 (5,1%); 1880 (7,3%); 1890 (9,5%); 1900 (13,9%); 1910 (16,7%); 1920 (29,4%); 1930 (34,4%); 1940 (29,2%); 1950 (33,3%); 1960 (41,4%); 1970 (33,6%); 1980 (30,6%); 1990 (33,8%). Nada disso, todavia, é muito revelador, sobretudo porquanto a criação de novos países se deu, em geral, por motivos que não têm necessariamente a ver com a expansão das democracias no mundo. De qualquer modo, em meados dos anos 90 do século passado estávamos, em termos percentuais, na mesma situação (na verdade um pouco abaixo) daquela que foi alcançada nos anos 30 (que só foi superada nos anos 60, logo seguida, porém, de forte regressão). Mas se houve algo como uma onda mundial de democratização no século 20, seus maiores saltos ocorreram nas três primeiras décadas (sobretudo na década de 1920 em relação à década de 1910), na passagem dos anos 50 para os anos 60 e na década de 1990. Cabe notar que houve forte regressão percentual (taxas negativas relativas) na década de 1940 em relação à década de 1930, na década de 1970 em relação à década de 1960 (a maior de todas) e na década de 1980 em relação à de 1970. Cf. Dahl, Robert (1998). Sobre a democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
(6) Cf. Capra, Fritjof (2002). As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2002.
(7) Cf. Lovelock, James (1991). Gaia: cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006.
(8) Idem.

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