... que o exercício da democracia depende da formação de uma opinião pública (que não é o mesmo que a soma das opiniões privadas da maioria da população);
Se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo político.
Na maioria dos países do mundo, se fôssemos organizar a sociedade com base nas opiniões da maioria da população, viveríamos provavelmente em uma ditadura ou em um tipo de regime excludente, preconceituoso, intolerante, corrupto e avesso a quaisquer dos elevados valores anunciados pelos defensores da democracia.
A democracia depende de uma chamada opinião pública, que não é o mesmo que a soma das opiniões dos habitantes que compõem a população de um país, mas que é composta a partir dos imputs fornecidos por aqueles que proferem opiniões no espaço público. Ou seja, a opinião pública não é a opinião da maioria da população, como somos induzidos a acreditar depois que apareceram os institutos de pesquisa de opinião. A opinião pública é aquela que se forma quando as opiniões são voluntariamente proferidas no espaço público e não quando são arrancadas por um entrevistador que bate à nossa porta ou corta o nosso caminho na via pública e depois totaliza as respostas que arrancou porque perguntou mas que nós não estavámos disposto a submeter ao debate público. Se existissem tais institutos na Atenas dos séculos 6 a 4, a democracia certamente não seria escolhida como forma preferível de governo. No entanto, a opinião pública em Atenas era favorável à democracia. Da mesma forma, no Brasil do auge do regime militar, os que se posicionavam contra o governo eram franca minoria e, ainda assim, expressavam a opinião pública da época.
Diz-se, com razão, que a opinião pública é um ator (ou um fator) que não pode ser desconsiderado nas sociedades contemporâneas. Ela não é exatamente o mesmo que chamamos de ‘sociedade civil’ (sobretudo não é nada que se possa reduzir ao conjunto de organizações da sociedade civil). Ela é algo que se forma, por certo, a partir das opiniões privadas, porém quando tais opiniões interagem coletivamente formando configurações complexas que brotam por emergência. Nesse sentido o mecanismo de construção ou formação da opinião pública é o mesmo mecanismo de formação do que chamamos de público, como, aliás, já havia percebido John Dewey, em 1927, no seu clássico “O público e seus problemas” (1).
Dewey, é claro, não podia conceber, àquela altura, a emergência e outros processos acompanhantes da complexidade social, mas anteviu certos conceitos dos quais agora somos obrigados a lançar mão para tentar descrever a formação do ‘público’. Hoje podemos dizer que a diversidade das iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E que a partir de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas privadas acaba gerando um tipo de regulação emergente. Quando milhares de micromotivos diferentes entram em interação, é possível se constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua constituição. Aqui começamos a roçar o problema!
No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é muito pequeno. O que indica que o público propriamente dito só pode, portanto, se constituir por emergência. Pode até haver, provisória e intencionalmente, um pacto que reconheça alguns processos de constituição do público, assim como há, por exemplo, um pacto que reconhece como receita pública o resultado do montante de impostos pagos por agentes privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica que transforma nossos recursos privados em recursos públicos quando pagamos impostos: há um assentimento social, que reconhece como válida a operação política pela qual esses recursos privados, pagos pelos chamados contribuintes, quando arrecadados compulsoriamente pelo Estado, passam a ser considerados como recursos públicos.
No entanto, há limites impostos pela racionalidade do tipo de agenciamento que estamos considerando. Querer transformar o interesse privado de um grupo em interesse público é semelhante a querer fazer uma mágica mesmo. Seria, mal comparando, como querer chamar de receita pública os impostos pagos apenas por uma dúzia de contribuintes.
Entenda-se que não é um problema de quantidade. É uma questão de complexidade, em que, evidentemente, a quantidade é uma variável, mas não a única. Se somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos, dificilmente haveria base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o direito de taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto privatizante e os tais contribuintes seriam considerados (e se comportariam como) donos do Estado (que, então, não poderia mais ser considerado um ente público).
Por outro lado, há uma razão eloqüente para afirmar que a quantidade não é a única variável nesse processo. Pois também não fica assegurada a formação do público pela simples soma – ou a totalização ex post e inorgânica – de imputs privados, mesmo que as parcelas dessa soma expressem quantitativamente a maioria de uma população.
No caso da chamada ‘opinião pública’, não basta somar (ou juntar e totalizar) as opiniões privadas. É necessário que essas opiniões se combinem, se polinizem mutuamente e se transformem nesse processo de emersão para que possamos ter uma opinião pública. Assim, poderá ocorrer que a maioria das opiniões privadas esteja em contradição com a opinião pública, mesmo quando as vertentes originalmente formadoras dessa opinião pública sejam minoritárias ou, até mesmo, francamente minoritárias (por exemplo, a opinião pública no Brasil de meados do século 19, quando, segundo algumas estimativas, apenas 1% da nossa população sabia ler e escrever – e os 99% analfabetos nem mesmo podiam usar os jornais como papel higiênico – era formada por opiniões privadas que, em sua origem, eram francamente minoritárias).
Não é que a posse de um conhecimento – como o conhecimento da língua falada e escrita, a alfabetização ou o letramento – qualifique a opinião por fora do processo político (sim, não estamos falando aqui de outra coisa senão do processo político), o que seria uma violação do pressuposto democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a partir da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto, escrito ou falado, criando assim uma condição de interação política que impede a participação dos que não possuem tais recursos cognitivos (e/ou de comunicação).
Em países em que as condições de interação política estão mais bem distribuídas, há uma tendência clara de convergência entre a opinião pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se sabe. Mas isso explica por que a vitalidade da democracia está sempre associada a existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe média” vigorosa. Não, não é porque a posição de classe em termos clássicos, quer dizer, a posição em relação ao processo de produção ou de acumulação do capital seja determinante, como julgaram todas as vertentes economicistas do pensamento sociológico (inclusive porque a determinação de classe da chamada “classe média” é uma operação impossível para as teorias de classes sociais fundamentadas em alguma racionalidade econômica), e sim porque há um acesso diferencial ao campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa “classe” em relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo estrito ou funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e, ainda, do seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos que não digam respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer).
Mas, voltando ao conceito de ‘público’, em geral, somos obrigados a reconhecer que tudo ou quase tudo que se diz sobre o público que não leva em conta esse processo emergente pelo qual o público se constitui a partir da complexidade social não é capaz de explicar a natureza do público, nem de compreender a fenomenologia a ele associada.
De modo geral confundimos o público com o estatal, quando, originalmente, trata-se do contrário. A formação do Estado – em todas as suas formas pretéritas, desde o Estado-Palácio-Templo sumeriano, passando pelas Cidades-Estados monárquicas da Antiguidade e pelos Estados reais e principescos – é o resultado de uma privatização dos assuntos comuns operada pelo autocrata. O surgimento da democracia foi o resultado de uma desprivatização, quando os assuntos privatizados pelo autocrata passaram a ser discutidos por todos na polis. Por isso tinha razão Aristóteles ao sugerir que público é o que é visível indistintamente para todos na comunidade (koinomia) política. Democracia e esfera pública são realidades coevas. Apenas ao Estado democrático pode-se atribuir um caráter público, mesmo assim dentro de certos limites bem estritos (ou estreitos).
Por exemplo, vejamos o que ocorre em relação às chamadas políticas públicas. Em geral, as políticas governamentais chamadas de políticas públicas não estão imunes à privatização (que é sempre uma desconstituição do sentido público). Um partido pode, por exemplo, alcançar o comando de um governo e, como organização privada que é, ao assumir o controle administrativo, direcionar uma determinada política segundo seus próprios interesses que não são públicos.
O fato de estar escrito na Constituição que uma coisa é pública, não significa que ela o seja realmente. Uma empresa dita pública tem suas contas, sua folha de pessoal e seus planos estratégicos visíveis a todos indistintamente? Nesse sentido ela seria realmente pública segundo um critério decorrente da sugestiva definição aristotélica? Tudo que é declaradamente público pode ser privatizado, quer por interesses privados econômicos, quer por interesses corporativos ou, ainda, por interesses políticos (como, por exemplo, os interesses partidários e clientelistas).
É por isso que não deveríamos nos preocupar tanto em saber se uma política é formal ou nominalmente pública e sim em saber se ela é uma política democratizante. Só pode ser publicizante o que é democratizante. E isso vale também para a chamada ‘opinião pública’.
A rigor uma opinião só pode ser pública se for resultado de um processo de publicização de opiniões privadas. Esse processo de publicização é um processo de democratização, ou seja, de liberdade de proferimento e de interação de opiniões. Em uma ditadura é muito difícil falar em opinião pública a não ser quando a liberdade de proferir opiniões é exercida como um ato disruptivo, contra aquela ordem estabelecida para impedir o exercício dessa liberdade e para desvalorizá-la, privatizando a esfera pública das opiniões.
A autocratização é sempre uma privatização. Em Cuba há uma privatização clara das opiniões nas mãos do autocrata: o ditador, por meio de seu partido-Estado e das instituições que lhe servem de correia de transmissão. Na Rússia de Putin e na Venezuela de Chávez estão em marcha processos de privatização das opiniões, com o objetivo de impedir que se forme uma opinião pública (e esse é o motivo da perseguição aos meios de comunicação nesses países). Em outros países da América Latina estão em curso processos de desvalorização da opinião pública em nome da opinião privada da maioria da população. Tal totalização das opiniões privadas majoritárias da população que não são proferidas no espaço público por seus atores, só pode ser feita, ex post e inorganicamente, por meio das pesquisas de opinião e das eleições.
Ora, se as opiniões privadas da imensa maioria de uma população – aquelas opiniões que são aferidas, por exemplo, por pesquisas de opinião ou pelas urnas – não indicam nenhum grau significativo de conversão à democracia, então isso coloca um enorme problema para a democracia. A ponto de, em certos países, levar alguns indignados a reclamar, em termos um tanto grosseiros, que o problema é que “quem decide as eleições não é quem lê jornal, mas sim quem limpa a bunda com ele”. Antes de reprovar o chulo dístico, devemos entender a perplexidade que o motivou.
Esse problema tem a ver com as relações entre o processo de formação da vontade política coletiva e o processo de composição da chamada opinião pública. Em uma democracia esses dois processos deveriam andar juntos ou, pelo menos, tender a isso.
Enfim, o que parece ser mesmo fatal para a democracia é a confusão entre o processo de formação da vontade política coletiva e alguns mecanismos utilizados para captar tendências de opinião (como as pesquisas de opinião) e para escolher representantes (como as eleições).
Embora guardem relações entre si, são coisas distintas. Se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Ninguém deveria proferir opiniões na esfera pública e nem submetê-las ao debate político. Bastaria segredar no ouvido do entrevistador de um instituto de pesquisa a sua opinião. Bastaria, de tempos em tempos, depositar secretamente seu voto na urna.
Mas, como já havia percebido o jovem-Dewey (1888), no texto “Ética da democracia”, a democracia não é só uma mera forma organizacional de governo de Estado submetida à regra da maioria (2). Como observou Axel Honneth (1998), esse conceito instrumental de democracia reduz a idéia de formação democrática da vontade política ao princípio numérico da regra de maioria... Ora, fazer isso significa assumir o fato de a sociedade ser uma massa desorganizada de indivíduos isolados cujos fins são tão incongruentes que a intenção ou opinião adotada pela maioria deve ser descoberta aritmeticamente (3).
Na maioria dos países do mundo, se fôssemos organizar a sociedade com base nas opiniões da maioria da população, viveríamos provavelmente em uma ditadura ou em um tipo de regime excludente, preconceituoso, intolerante, corrupto e avesso a quaisquer dos elevados valores anunciados pelos defensores da democracia.
A democracia depende de uma chamada opinião pública, que não é o mesmo que a soma das opiniões dos habitantes que compõem a população de um país, mas que é composta a partir dos imputs fornecidos por aqueles que proferem opiniões no espaço público. Ou seja, a opinião pública não é a opinião da maioria da população, como somos induzidos a acreditar depois que apareceram os institutos de pesquisa de opinião. A opinião pública é aquela que se forma quando as opiniões são voluntariamente proferidas no espaço público e não quando são arrancadas por um entrevistador que bate à nossa porta ou corta o nosso caminho na via pública e depois totaliza as respostas que arrancou porque perguntou mas que nós não estavámos disposto a submeter ao debate público. Se existissem tais institutos na Atenas dos séculos 6 a 4, a democracia certamente não seria escolhida como forma preferível de governo. No entanto, a opinião pública em Atenas era favorável à democracia. Da mesma forma, no Brasil do auge do regime militar, os que se posicionavam contra o governo eram franca minoria e, ainda assim, expressavam a opinião pública da época.
Diz-se, com razão, que a opinião pública é um ator (ou um fator) que não pode ser desconsiderado nas sociedades contemporâneas. Ela não é exatamente o mesmo que chamamos de ‘sociedade civil’ (sobretudo não é nada que se possa reduzir ao conjunto de organizações da sociedade civil). Ela é algo que se forma, por certo, a partir das opiniões privadas, porém quando tais opiniões interagem coletivamente formando configurações complexas que brotam por emergência. Nesse sentido o mecanismo de construção ou formação da opinião pública é o mesmo mecanismo de formação do que chamamos de público, como, aliás, já havia percebido John Dewey, em 1927, no seu clássico “O público e seus problemas” (1).
Dewey, é claro, não podia conceber, àquela altura, a emergência e outros processos acompanhantes da complexidade social, mas anteviu certos conceitos dos quais agora somos obrigados a lançar mão para tentar descrever a formação do ‘público’. Hoje podemos dizer que a diversidade das iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E que a partir de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas privadas acaba gerando um tipo de regulação emergente. Quando milhares de micromotivos diferentes entram em interação, é possível se constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua constituição. Aqui começamos a roçar o problema!
No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é muito pequeno. O que indica que o público propriamente dito só pode, portanto, se constituir por emergência. Pode até haver, provisória e intencionalmente, um pacto que reconheça alguns processos de constituição do público, assim como há, por exemplo, um pacto que reconhece como receita pública o resultado do montante de impostos pagos por agentes privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica que transforma nossos recursos privados em recursos públicos quando pagamos impostos: há um assentimento social, que reconhece como válida a operação política pela qual esses recursos privados, pagos pelos chamados contribuintes, quando arrecadados compulsoriamente pelo Estado, passam a ser considerados como recursos públicos.
No entanto, há limites impostos pela racionalidade do tipo de agenciamento que estamos considerando. Querer transformar o interesse privado de um grupo em interesse público é semelhante a querer fazer uma mágica mesmo. Seria, mal comparando, como querer chamar de receita pública os impostos pagos apenas por uma dúzia de contribuintes.
Entenda-se que não é um problema de quantidade. É uma questão de complexidade, em que, evidentemente, a quantidade é uma variável, mas não a única. Se somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos, dificilmente haveria base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o direito de taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto privatizante e os tais contribuintes seriam considerados (e se comportariam como) donos do Estado (que, então, não poderia mais ser considerado um ente público).
Por outro lado, há uma razão eloqüente para afirmar que a quantidade não é a única variável nesse processo. Pois também não fica assegurada a formação do público pela simples soma – ou a totalização ex post e inorgânica – de imputs privados, mesmo que as parcelas dessa soma expressem quantitativamente a maioria de uma população.
No caso da chamada ‘opinião pública’, não basta somar (ou juntar e totalizar) as opiniões privadas. É necessário que essas opiniões se combinem, se polinizem mutuamente e se transformem nesse processo de emersão para que possamos ter uma opinião pública. Assim, poderá ocorrer que a maioria das opiniões privadas esteja em contradição com a opinião pública, mesmo quando as vertentes originalmente formadoras dessa opinião pública sejam minoritárias ou, até mesmo, francamente minoritárias (por exemplo, a opinião pública no Brasil de meados do século 19, quando, segundo algumas estimativas, apenas 1% da nossa população sabia ler e escrever – e os 99% analfabetos nem mesmo podiam usar os jornais como papel higiênico – era formada por opiniões privadas que, em sua origem, eram francamente minoritárias).
Não é que a posse de um conhecimento – como o conhecimento da língua falada e escrita, a alfabetização ou o letramento – qualifique a opinião por fora do processo político (sim, não estamos falando aqui de outra coisa senão do processo político), o que seria uma violação do pressuposto democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a partir da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto, escrito ou falado, criando assim uma condição de interação política que impede a participação dos que não possuem tais recursos cognitivos (e/ou de comunicação).
Em países em que as condições de interação política estão mais bem distribuídas, há uma tendência clara de convergência entre a opinião pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se sabe. Mas isso explica por que a vitalidade da democracia está sempre associada a existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe média” vigorosa. Não, não é porque a posição de classe em termos clássicos, quer dizer, a posição em relação ao processo de produção ou de acumulação do capital seja determinante, como julgaram todas as vertentes economicistas do pensamento sociológico (inclusive porque a determinação de classe da chamada “classe média” é uma operação impossível para as teorias de classes sociais fundamentadas em alguma racionalidade econômica), e sim porque há um acesso diferencial ao campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa “classe” em relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo estrito ou funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e, ainda, do seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos que não digam respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer).
Mas, voltando ao conceito de ‘público’, em geral, somos obrigados a reconhecer que tudo ou quase tudo que se diz sobre o público que não leva em conta esse processo emergente pelo qual o público se constitui a partir da complexidade social não é capaz de explicar a natureza do público, nem de compreender a fenomenologia a ele associada.
De modo geral confundimos o público com o estatal, quando, originalmente, trata-se do contrário. A formação do Estado – em todas as suas formas pretéritas, desde o Estado-Palácio-Templo sumeriano, passando pelas Cidades-Estados monárquicas da Antiguidade e pelos Estados reais e principescos – é o resultado de uma privatização dos assuntos comuns operada pelo autocrata. O surgimento da democracia foi o resultado de uma desprivatização, quando os assuntos privatizados pelo autocrata passaram a ser discutidos por todos na polis. Por isso tinha razão Aristóteles ao sugerir que público é o que é visível indistintamente para todos na comunidade (koinomia) política. Democracia e esfera pública são realidades coevas. Apenas ao Estado democrático pode-se atribuir um caráter público, mesmo assim dentro de certos limites bem estritos (ou estreitos).
Por exemplo, vejamos o que ocorre em relação às chamadas políticas públicas. Em geral, as políticas governamentais chamadas de políticas públicas não estão imunes à privatização (que é sempre uma desconstituição do sentido público). Um partido pode, por exemplo, alcançar o comando de um governo e, como organização privada que é, ao assumir o controle administrativo, direcionar uma determinada política segundo seus próprios interesses que não são públicos.
O fato de estar escrito na Constituição que uma coisa é pública, não significa que ela o seja realmente. Uma empresa dita pública tem suas contas, sua folha de pessoal e seus planos estratégicos visíveis a todos indistintamente? Nesse sentido ela seria realmente pública segundo um critério decorrente da sugestiva definição aristotélica? Tudo que é declaradamente público pode ser privatizado, quer por interesses privados econômicos, quer por interesses corporativos ou, ainda, por interesses políticos (como, por exemplo, os interesses partidários e clientelistas).
É por isso que não deveríamos nos preocupar tanto em saber se uma política é formal ou nominalmente pública e sim em saber se ela é uma política democratizante. Só pode ser publicizante o que é democratizante. E isso vale também para a chamada ‘opinião pública’.
A rigor uma opinião só pode ser pública se for resultado de um processo de publicização de opiniões privadas. Esse processo de publicização é um processo de democratização, ou seja, de liberdade de proferimento e de interação de opiniões. Em uma ditadura é muito difícil falar em opinião pública a não ser quando a liberdade de proferir opiniões é exercida como um ato disruptivo, contra aquela ordem estabelecida para impedir o exercício dessa liberdade e para desvalorizá-la, privatizando a esfera pública das opiniões.
A autocratização é sempre uma privatização. Em Cuba há uma privatização clara das opiniões nas mãos do autocrata: o ditador, por meio de seu partido-Estado e das instituições que lhe servem de correia de transmissão. Na Rússia de Putin e na Venezuela de Chávez estão em marcha processos de privatização das opiniões, com o objetivo de impedir que se forme uma opinião pública (e esse é o motivo da perseguição aos meios de comunicação nesses países). Em outros países da América Latina estão em curso processos de desvalorização da opinião pública em nome da opinião privada da maioria da população. Tal totalização das opiniões privadas majoritárias da população que não são proferidas no espaço público por seus atores, só pode ser feita, ex post e inorganicamente, por meio das pesquisas de opinião e das eleições.
Ora, se as opiniões privadas da imensa maioria de uma população – aquelas opiniões que são aferidas, por exemplo, por pesquisas de opinião ou pelas urnas – não indicam nenhum grau significativo de conversão à democracia, então isso coloca um enorme problema para a democracia. A ponto de, em certos países, levar alguns indignados a reclamar, em termos um tanto grosseiros, que o problema é que “quem decide as eleições não é quem lê jornal, mas sim quem limpa a bunda com ele”. Antes de reprovar o chulo dístico, devemos entender a perplexidade que o motivou.
Esse problema tem a ver com as relações entre o processo de formação da vontade política coletiva e o processo de composição da chamada opinião pública. Em uma democracia esses dois processos deveriam andar juntos ou, pelo menos, tender a isso.
Enfim, o que parece ser mesmo fatal para a democracia é a confusão entre o processo de formação da vontade política coletiva e alguns mecanismos utilizados para captar tendências de opinião (como as pesquisas de opinião) e para escolher representantes (como as eleições).
Embora guardem relações entre si, são coisas distintas. Se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Ninguém deveria proferir opiniões na esfera pública e nem submetê-las ao debate político. Bastaria segredar no ouvido do entrevistador de um instituto de pesquisa a sua opinião. Bastaria, de tempos em tempos, depositar secretamente seu voto na urna.
Mas, como já havia percebido o jovem-Dewey (1888), no texto “Ética da democracia”, a democracia não é só uma mera forma organizacional de governo de Estado submetida à regra da maioria (2). Como observou Axel Honneth (1998), esse conceito instrumental de democracia reduz a idéia de formação democrática da vontade política ao princípio numérico da regra de maioria... Ora, fazer isso significa assumir o fato de a sociedade ser uma massa desorganizada de indivíduos isolados cujos fins são tão incongruentes que a intenção ou opinião adotada pela maioria deve ser descoberta aritmeticamente (3).
Indicação de leitura
Vale a pena ler o livro de John Dewey (1927). The Public and its Problems.
Notas
(1) Dewey, John (1927). The Public and its Problems. Chicago: Gataway Books, 1946 (existe edição em espanhol: La opinión pública y sus problemas. Madrid: Morata, 2004)
(2) Cf. Dewey, John (1888). Ethics of Democracy, apud Honneth, Axel (1998).
(3) Cf. Honneth, Axel (1998). “Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje”.
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