20080518

CAPÍTULO R | REGRAS

... que a democracia não deve escolher alguém para uma função de coordenação política em razão do conteúdo de suas propostas (substantivas) mas basear-se na avaliação de sua disposição de respeitar as regras democraticamente estabelecidas e de sua capacidade de promover a interação democrática de todas as propostas existentes;

A democracia é um sistema de princípios plenos dos quais decorrem regras sempre transitórias e lugares vazios.


Basta para a democracia que assumam as funções de coordenação política os que respeitam as regras do jogo democrático, não sendo necessário buscar alguém que, supostamente, tenha as melhores idéias do mundo sobre a redenção da humanidade, o futuro da espécie humana, a sociedade perfeita, o homem novo ou sobre qualquer outra coisa, por mais maravilhosa que seja. Os que imaginam estar fazendo a escolha de salvadores por meio do processo político, estão no lugar errado (deveriam, quem sabe, procurar uma religião para satisfazer sua ânsia de sentido para a vida).

Basta para a democracia, no sentido “fraco” mesmo do conceito (porém pleno), não desrespeitar abertamente – nem falsificar ou manipular, usando expedientes escusos – as regras que decorrem dos princípios da liberdade, da publicidade, da eletividade, da rotatividade (ou alternância), da legalidade e da institucionalidade e, como conseqüência de todos esses, da legitimidade dos regimes democráticos.

Liberdade. As regras que decorrem do princípio da liberdade compreendem aquelas que visam a assegurar o exercício da liberdade de ir e vir, da liberdade de organização social e política e da liberdade de crença e de expressão (coisas que, por incrível que pareça, ainda não existem em países como China, Coréia do Norte ou Cuba), incluindo-se hoje o direito de pesquisar, receber e transmitir informações e idéias sem interferência por qualquer meio, inclusive no cirberespaço e a liberdade de imprensa, stricto sensu e lato sensu, o que deve contemplar a existência de diversas fontes alternativas de informação e não apenas uma liberdade formal obstruída na prática pela imposição de dificuldades legais ou burocráticas para a abertura e o funcionamento de meios de comunicação por parte de quem pensa diferente, seja por que pretexto for. Via de regra as protoditaduras (como a Venezuela atual) e as ditaduras (como as citadas acima) tentam falsificar esse princípio alegando incitamento à desordem ou ameaça à segurança nacional.

Publicidade. As regras que decorrem do princípio da publicidade têm a ver com a transparência necessária (capaz de ensejar uma efetiva accountability) dos atos do governo e a dissolução do segredo dos negócios de Estado (que constitui uma exigência real em circunstâncias que possam ameaçar a segurança da sociedade democrática e o bem-estar dos cidadãos mas que, na maior parte dos casos, sob o pretexto de manter a segurança nacional e a ordem pública, constitui mero pretexto para ocultar procedimentos autocratizantes ou privatizantes).

Eletividade. As regras que decorrem do princípio da eletividade são aquelas que disciplinam, de modo a tornar o mais equânime que for possível (dentro das limitações impostas pelas diferenças de força, riqueza e conhecimento existentes na sociedade em questão), a escolha dos governantes pelos governados, o que compreende o direito de voto para eleger representantes parlamentares e executivos (governamentais) pelo sistema universal, direto e secreto, em eleições livres, periódicas e isentas (limpas), atribuindo-se a todos os cidadãos em condições legais de votar o igual direito de ser votados (e a exigência adicional de que os cidadãos devam pertencer a partidos é, como se pode ver, um contrabando autocrático que atenta contra a transitividade do princípio da eletividade, mas que ainda vige em boa parte dos regimes democráticos).

Rotatividade (ou alternância). As regras que decorrem do princípio da rotatividade dizem respeito à efetiva possibilidade de alternância no poder entre situação e oposição. Essa questão é chave, como vimos, para distinguir as democracias das autocracias e, inclusive, dos arremedos de democracia (ou seja, das democracias parasitadas por forças autoritárias, aparentemente democráticas, mas que na verdade querem restringi-la ou restringem-na objetivamente, seja por meio de um processo claramente protoditatorial, seja por meio de obscura manipulação política, em geral de natureza populista). Assumir a rotatividade ou a alternância em um sentido mais ampliado significa também, como assinalou Felipe González (2007), promover à categoria de princípio “a aceitabilidade da derrota como elemento essencial do funcionamento democrático” (1).

Legalidade e Institucionalidade. As regras que decorrem dos princípios da legalidade e da institucionalidade têm a ver com a estrutura e o funcionamento do chamado Estado de direito, contemplando a existência e o funcionamento de instituições estáveis, capazes de cumprir papéis democraticamente estabelecidos em lei e protegidas de influências políticas indevidas do governo. Se as leis são descumpridas ou dribladas ou se as instituições são derruídas ou apenas ocupadas, aparelhadas, pervertidas e degeneradas para servir aos propósitos políticos de um grupo privado (instalado dentro ou fora do governo), então o regime democrático corre perigo. Às vezes tal ameaça não é suficiente para colocar em risco o sistema representativo formal, mas – sem qualquer sombra de dúvida – quando isso acontece é sinal de que está havendo um refreamento do processo de democratização da sociedade. Se a lei (democraticamente aprovada) for descumprida e não houver a sanção respectiva, a democracia (tanto no sentido “fraco”, quanto no sentido “forte” do conceito) sempre sofrerá com tal violação, mesmo quando se argumente que a lei é injusta (e ainda que o seja de fato: neste caso, o papel dos democratas é propor a mudança da lei e não o de afrontá-la ou descumpri-la). Mas toda lei democraticamente aprovada é legítima (na medida da legitimidade do processo que a gerou).

Legitimidade. Só é legítimo na democracia (mesmo no sentido “fraco” do conceito) o ator político que respeita – sem tentar falsificar ou manipular – o conjunto das regras que emana dos princípios acima. Mas se, baseado nos votos que obteve ou nos altos índices de popularidade que alcançou, um representante (ou militante) considerar que pode desrespeitar, falsificar ou manipular as regras emanadas desses princípios devido a contar com o apoio da maioria da população (ou porque teria a “proposta correta” ou a “ideologia verdadeira” para resolver todos os problemas do mundo), então tal representante (ou militante) deverá ser considerado ilegítimo do ponto de vista da democracia.

A questão da legitimidade é central para a democracia, mesmo quando tomada no sentido “fraco” do conceito. Como escreveu, com maestria, Ralf Dahrendorf (2005):

“A legitimidade é um conceito que vai mais além da noção de legalidade. Depende do que as pessoas afetadas considerem como real... Sem legitimidade, nenhum sistema político pode alcançar estabilidade e sem eleições (quer dizer, sem uma expressão explícita do consentimento popular em relação aos que detêm o poder) não pode haver legitimidade. Mas conquanto eleições livres sejam uma condição necessária para a legitimidade, estão longe de ser suficientes para garanti-la. As disposições constitucionais devem assegurar um lugar, nas instituições políticas dos países, a todos os grupos existentes. É igualmente imperativo estabelecer um império da lei, exercício por um poder judiciário independente e respeitado” (2).

No excelente artigo “Democracia sem democratas”, Dahrendorf (2004) já chamava a atenção para o fato de que a democracia meramente eleitoral (quer dizer, nos nossos termos, a democracia não apenas no sentido “fraco”, mas também não-pleno do conceito) não está protegida dos que querem parasitá-la (ou seja, nos nossos termos, dos que querem usá-la para autocratizá-la). Comentando a definição (“fraca”) de Karl Popper, segundo a qual a democracia “é um modo de tirar os que estão no poder sem derramamento de sangue” pelo método de “depositar os votos nas urnas”, Dahrendorf observa que tal definição “não é útil quando se coloca uma pergunta que se converteu em tema recorrente em várias partes do mundo: o que ocorre se os que saem do poder acreditam na democracia enquanto que os que os substituem não? Em outras palavras: o que ocorre se os caras “errados” são eleitos?” (3).

Dahrendorf assinala, então, que “os cidadãos ativos que defendem a ordem liberal devem ser sua salvaguarda. Porém há outro e mais importante elemento que proteger: o império da lei”:

Império da lei não é a mesma coisa que democracia, nem são elementos que necessariamente garantam um ao outro. O império da lei é a aceitação de que as leis, não aquelas ditadas por alguma autoridade suprema, mas pela cidadania, valem para todos: os que estão no poder, os que estão na oposição e os que estão fora do jogo do poder... As assim chamadas “leis de exceção”, que suspendem o império da lei são a primeira arma dos ditadores. Porém é mais difícil usar o império da lei para socavar a lei do que usar as eleições populares contra a democracia” (4).

De qualquer modo, a democracia no sentido “fraco”, porém pleno, do conceito, parece exigir mais que simplesmente o respeito às regras que decorrem do princípio da legalidade e da institucionalidade. Ela exige legitimidade, compreendida como o respeito às regras que decorrem de todos os princípios democráticos enunciados acima. A rigor país algum considerado democrático obedece 100% das regras emanadas do conjunto desses princípios – que constitui uma espécie de “programa máximo” da democracia liberal – mas podemos dizer que atualmente, pelo menos, entre 20 a 30% dos países do mundo as observam em uma proporção julgada satisfatória (ou seja, de uma forma que não instrumentaliza ou parasita a democracia) do ponto de vista do sentido “fraco” de democracia.

Pode-se dizer que existem na atualidade dois modos autoritários de parasitar a democracia (ou de usar a democracia contra a democracia) ou seja, de usar instrumentalmente a democracia liberal (supostamente a serviço das elites, dos conservadores, da direita) – na verdade, o que é usado aqui é, em grande parte, o sistema eleitoral – para alcançar uma democracia popular (supostamente a favor do povo): a “protoditadura” e aquilo que poderíamos chamar, a despeito da falta de jeito do neologismo, de “manipuladura”. Freqüentemente ambas as ameaças à democracia se expressam por meio de projetos populistas ou neopopulistas. As “manipuladuras” representam a autocratização possível da democracia nas condições de sociedades complexas e com mais experiência de democracia (como o Brasil e a Argentina, por exemplo), enquanto que as “protoditaduras” são possíveis em sociedades mais simples e onde a democracia é mais incipiente (como são os casos da Venezuela, da Bolívia, da Nicarágua e do Equador). Há casos de “protoditaduras” em sociedades complexas, porém sem experiência democrática, como a Rússia de Putin. A jocosa expressão “manipuladura” faz alusão ao processo de manipulação autoritária que opera por meio da perversão da política e da degeneração das instituições da democracia liberal.

Mas se alguém for avaliado capaz de respeitar as regras democraticamente estabelecidas (sem tentar aboli-las, falsificá-las ou manipulá-las, como ocorre nas ditaduras, nas “protoditaduras” e nas “manipuladuras”) e de promover a interação democrática de todas as propostas apresentadas, então a democracia não faz nenhuma objeção que tal ator seja escolhido para qualquer função de coordenação política (desde a direção de um organismo partidário até a chefia de um governo ou de um Estado). É isso que significa dizer que os lugares na democracia são vazios, ou seja, que esses lugares podem ser ocupados por qualquer um que se comprometa com procedimentos democráticos acordes às regras que decorrem dos princípios democráticos.

Mas não escolher alguém em função da discordância com suas idéias (substantivas) pode significar um preconceito antidemocrático: o de que um coletivo não tem capacidade de construir uma proposta (a sua proposta coletiva) por meio da verificação e da combinação da variedade de opiniões que existem em seu seio. Mais do que isso, significa, no fundo, esperar que o escolhido por nós manipule de algum modo o processo democrático para conduzi-lo na direção da proposta com a qual concordamos e queremos tornar vitoriosa, antes mesmo de sua interação com as demais propostas. Todavia, surpreendentemente para a mentalidade autocrática, a democracia é um sistema de princípios plenos dos quais decorrem regras sempre transitórias e lugares vazios.

No sentido “forte” do conceito, a democracia nada mais é do que uma radicalização dos princípios enunciados acima de sorte a produzir continuamente regras cada vez mais democratizantes, como, por exemplo, as que serão sugeridas a seguir, válidas, entretanto, somente para o interior de organizações formadas a partir de livre pactuação entre iguais.

Em princípio, todos devem poder decidir sobre tudo e a instância deliberativa máxima de uma organização deve ser o conjunto de todos os seus participantes. Mas nenhuma decisão deve ser tomada sem prévia discussão. Sim, mas política não é apenas decisão por deliberação. Antes de ser (processo de) decisão, política é (“arte” da) conversação. Conquanto pareça mais democrático que possam fazê-lo, nem sempre todos devem ser chamados (nem se sentir obrigados) a decidir sobre tudo. Em certo sentido, por inusitado que pareça, quando há necessidade de deliberar formalmente para decidir é sinal de que um assunto não está maduro, ou seja, é sinal de que faltou conversação. Argumenta-se que, na maior parte das vezes, não se tem tempo suficiente para esperar a formação, de baixo para cima, de uma opinião que atenda às expectativas gerais e, aí, a solução é deliberar logo para decidir. Mas isso, que pode ser válido – em muitos casos, nunca em todos – para a esfera da política institucional, não o é para organizações, articulações e movimentos da sociedade civil. Mesmo na política institucional algum tempo deverá haver para discutir antes de decidir.

Votação alguma deve ser realizada sem, antes, serem esgotadas as possibilidades de acordo ou de construção do consenso. Talvez bastasse adotar essa regra para modificar totalmente o clima adversarial característico das assembléias ou outros coletivos sociais contaminados por uma política autocratizante. Em organizações da sociedade, não há nada que obrigue a tomada de decisão de afogadilho, partindo-se logo para a votação antes de se tentar construir o consenso. Mesmo na política institucional, grande parte das decisões tomadas por votação sob o pretexto da urgência, poderia ser tomada mais tarde, quando a discussão estivesse mais amadurecida.

Consultas devem ser, preferencialmente, qualitativas e qualificadas. Quando isso não for possível, devem ser baseadas em múltipla proposição ou escolha. Apenas em casos extremos devem ser plebiscitárias. Em organizações, articulações e movimentos da sociedade civil – salvo em casos extremos (que envolvam, por exemplo, a sobrevivência ou a segurança coletivas) – não há qualquer razão para adotar consultas plebiscitárias ou convocar referendos.

Quando houver votação, todas as posições, majoritárias e minoritárias, devem ser anunciadas, juntamente com os votos obtidos por cada uma dessas posições, como resultado do processo de votação. É o mínimo que se pode fazer se considerarmos a votação como um episódio – procedimental – do processo democrático e não como o coração da democracia. Conhecer todas as posições e os apoios que obtiveram é fundamental para construir uma história da conversação e poder observar a trajetória das opiniões e do debate ao longo do tempo. É essa série de eventos que constitui a “tradição” democrática, se é que se pode falar assim. Ou melhor, é assim que se constrói a cultura democrática indispensável para criar o ambiente favorável ao exercício e a reprodução de práticas democráticas.

Participar e votar são direitos, não deveres. O direito de participar e de votar é o mesmo direito de não participar e de não votar. Em princípio, todos devem poder ser candidatos a tudo. O direito de indicar candidatos ou votar em candidatos para qualquer cargo é o mesmo direito de não aceitar ser indicado ou votado para qualquer cargo. De ninguém deve ser cobrado o voto, muito menos outras formas mais diretas de participação política. São atos voluntários, não obrigações. Voto obrigatório é uma excrescência. Participação compulsória seria um crime contra a liberdade. Por outro lado, quem não está qualificado para representar um coletivo também não deveria estar qualificado para integrá-lo. Não aceitar ser indicado ou votado para qualquer cargo faz parte da liberdade do cidadão.

Todas as direções devem ser coordenações e todas as coordenações devem ser organismos colegiados, inclusive as coordenações de coordenações, não devendo haver presidentes, secretários ou coordenadores individuais. Normalmente as pessoas tendem a não aceitar regras como essa, baseadas em avaliações da ineficiência de colegiados. Argumenta-se que até (!) Lênin teve que reconhecer as vantagens do comando unipessoal em certos tipos de organização (no caso, as indústrias; mas depois isso acabou valendo – de facto – para quase todos os tipos de instituições, inclusive para o comando do partido e do Estado). Com todas as suas dificuldades de funcionamento, já sobejamente conhecidas, é inegável, entretanto, que organismos colegiados tendem a ser mais democráticos do que comandos individuais.

Para escolha de coordenações pode-se adotar o rodízio ou o sorteio, ou combinar, em um sistema misto, a votação com o sorteio. Essa é outra regrinha cuja introdução desorganizaria completamente os mecanismos de poder estabelecidos pela política não suficientemente democratizada (no sentido “forte” do conceito). O rodízio e, sobretudo, o sorteio, desbaratam a construção de organizações (autocráticas) que costumam surgir, com o intuito de alcançar e reter o poder em mãos de um grupo, dentro de organizações (democráticas). Eis o ponto: os grupos – tendências, facções – que se formam para disputar o poder dentro de organizações democráticas, em geral são (por várias razões, inclusive a da eficácia) mais autocráticos do que as organizações que os abrigam. Inconscientemente, a dinâmica que enseja a formação desses grupos se coloca a favor da autocratização da democracia e não de sua democratização. Geralmente os “democratas” formais não querem nem ouvir falar em sorteio. Argumentam que isso desqualifica a escolha coletiva, a qual deveria se dar com base em propostas ou projetos apresentados pelos candidatos. Mas, a rigor, todos esses argumentos têm um fundo autocrático. Se um grupo de pessoas é bom o suficiente para integrar uma organização, então deveria também ser bom para coordená-la em nome do conjunto. É claro que tudo isso pressupõe outros processos democráticos acompanhantes, como os expressos nas regras acima; por exemplo, o sorteio não poderia conviver adequadamente com a possibilidade de controle unipessoal de corte autocrático, pois, neste caso, o azar poderia conduzir à direção de uma organização um protoditador, um sociopata. Além disso, o sorteio não combina com a votação como método exclusivo ou prioritário de decisão, de vez que a escolha de coordenações não pode ser confundida com a escolha de propostas. Mas, como vimos acima, a rigor não se deveria votar em alguém em razão de sua proposta substantiva e sim de sua proposta procedimental. Se as regras democráticas estão claras e se há uma segurança mínima de que elas serão respeitadas, então quaisquer membros de uma organização podem assumir a sua coordenação (quer dizer a coordenação dos processos democráticos regidos por tais regras).

Sempre que houver disputa de chapas para o preenchimento de (uma parte dos) cargos em instâncias de coordenação, deve haver composição proporcional. Também parece óbvio que o vencedor não pode levar tudo. Sob qualquer ponto de vista, isso não é muito democrático. Se houver votação para preenchimento de cargos de coordenação ou para a escolha de delegações (e isso, como assinala a sentença acima, deveria ser admitido somente para uma parte dos cargos disponíveis, já que o sorteio e o rodízio constituem, em geral, alternativas mais democráticas do que o voto), então o mínimo aceitável é que haja composição proporcional ao número de votos obtidos pelas chapas.

Quando houver empate em votações, a ninguém se pode atribuir o poder de desempatar. Empate em votações obriga a abertura de novo processo de discussão. Em último caso, o desempate deverá ser feito por sorteio. Por que alguém deveria ter o poder de decidir sozinho em caso de empate? O tal “Voto de Minerva” seria um eco do passado, uma sombra (ou assombração) de outras eras, em que se atribuía unção divina a alguém que, em virtude desse munus extraordinário (e extrapolítico), estaria habilitado a exercer um poder moderador (um papel tão especial que outros não seriam capazes de desempenhar)? O que a democracia teria a ver com tais tradições míticas, sacerdotais e autocráticas? Não parece óbvio que o empate indica que não houve convencimento suficiente? Qual é o problema de rediscutir a questão e, se não houver mesmo jeito, depois de várias tentativas, desempatar por sorteio? A urgência? Mas a urgência não é uma categoria da política: é um problema para o pronto-socorro, para a antiga “rádiopatrulha”, para o corpo de bombeiros ou para os salva-vidas. Parece óbvio que esses argumentos são inventados para reproduzir um determinado tipo de prática política. Um coletivo que, depois de discutir e rediscutir várias vezes uma mesma questão, possui blocos internos que não se movem, tem algum problema grave do ponto de vista dos pressupostos da democracia (que não poderá ser resolvido com a atribuição a uma pessoa do poder de desempatar votações). Se for assim, quer dizer, se as opiniões estiverem irredutivelmente equilibradas, qual a diferença entre o sorteio e o poder unipessoal de desempatar?

Expressando posições assumidas coletivamente, qualquer participante pode falar em nome de sua organização, sem necessidade de delegação. No entanto, as coisas não se passam assim nas organizações que conhecemos. Para falar em nome de uma organização, um integrante precisa receber uma delegação, que, entretanto, em nada garante que ele será fiel às opiniões coletivas, na medida em que não se pode separar – a não ser em termos formais – as suas opiniões pessoais das opiniões da organização que dirige ou da qual recebeu uma representação especial para ser porta-voz. Na política institucional basta analisar as declarações dos chefes de Estado e de governo e dos presidentes dos poderes legislativo e judiciário, para perceber que tudo isso é mais ou menos uma farsa. Na política que se pratica nas organizações, articulações e movimentos da sociedade civil, essa situação é pior ainda. Tais regras, não raro, apenas escondem o desejo dos dirigentes de manter em suas mãos o monopólio da palavra coletiva, ou seja, seu desejo de reter o poder em suas mãos.

É bom frisar que, se um conjunto arbitrário (e sempre transitório) de regras, como esse que foi comentado acima, não pode constituir marco legal regulatório para as sociedades atuais e para suas instâncias normativas baseadas no padrão de organização hierárquico e na (ou no monopólio da) violência, isso não significa que elas não possam inspirar procedimentos e mecanismos democratizantes das relações dessas instâncias com as sociedades atuais.

A democracia dos modernos também foi refutada como inaplicável pela imensa maioria dos teóricos da política durante, pelo menos, três séculos (contados a partir de Hobbes). Questionava-se, por exemplo, o sufrágio universal, como uma idéia incompatível com a natureza do ser humano em sociedade. No entanto, como constatamos, o mecanismo do voto era incompatível apenas com os preconceitos de alguns seres humanos, com as idéias que estavam nas suas cabeças. E não se venha dizer que não havia, entre os séculos 17 a 19, condições materiais para a adoção da democracia representativa (condições que só se teriam reunido, segundo o pensamento economicista, a partir da revolução industrial). Se assim fosse, os antigos gregos não teriam conseguido inventar e ensaiar, durante longo tempo, processos democráticos, há dois mil anos.

A razão pela qual tais regras democratizantes (que realizam a democracia, no sentido “forte” do conceito) não são aplicáveis nas instituições políticas formais que ainda temos, é o seu padrão de organização centralizador, como veremos no próximo capítulo.


Indicações de leitura

Vale a pena ler o artigo “Aceptabilidade de la derrota”, de Felipe González, publicado pelo jornal El Pais (29/06/07). Vale a pena ler também os artigos de Ralf Dahrendorf, já indicados anteriormente.

Vale a pena, igualmente, ler o artigo “Democracia e Constituição” de Celso Lafer, publicado pelo jornal O Estado de São Paulo (16/09/07).

Sobre as novas regras (sugeridas acima apenas a título de exemplo) para uma política democratizada (no sentido “forte” do conceito), não há muita coisa a indicar, sobretudo porquanto os atuais teóricos da radicalização da democracia não parecem muito preocupados em exercitar sua imaginação criadora nesse sentido (dando asas àquela criatividade que Dewey (1939) julgou tão necessária em seu último discurso sobre o tema da democracia), senão com a constituição de uma força para combater aquilo que julgam ser a hegemonia liberal das concepções representativo-elitistas de democracia, como veremos no capítulo v) democratização.


Notas
(1) González, Felipe (2007). “Aceptabilidade de la derrota”. Madrid: El País (29/06/07).
(2) Dahrendorf, Ralf (2005). “Legitimidad y elecciones”. www.project-syndicate.org/contributor/77.
(3) Dahrendorf. Ralf (2004). “Democracia sin democratas”. www.project-syndicate.org/contributor/77.
(4) Idem.

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