20080518

CAPÍTULO X | DEIXAR

... que a democracia não é um ensinar, mas um deixar aprender (e que a missão do Estado não é educar a sociedade, corrigindo os supostos “defeitos de fábrica” do ser humano para produzir qualquer monstruosidade como um “homem novo”);


Somente psicopatas e sociopatas autocráticos
imaginam que possuem a fórmula para produzir um “homem novo”.


Mais vale um erro cometido na democracia do que muitos acertos de uma autocracia. A democracia pressupõe liberdade para errar e para aprender com os próprios erros. Mas, além disso, a democracia implica sempre um aprendizado coletivo em um processo de experimentação sem o qual ela não pode ser valorizada – e, na verdade, nem mesmo realizada – pelos sujeitos políticos que dela participam. A comunidade política se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo.

Mas é a rede social que aprende com sua própria experiência e não os indivíduos isolados como doutrinandos de uma espécie de “Estado-reformatório”. Na democracia (e isso vale tanto para o sentido “forte”, quanto para o sentido “fraco” do conceito) não cabe ao Estado reformar o ser humano. Não há nada o que reformar. Somente psicopatas e sociopatas autocráticos imaginam que possuem a fórmula para produzir um “homem novo”, baseados na crença de que o ser humano veio com uma espécie de “defeito de fábrica” que deve ser corrigido pelos possuidores da doutrina verdadeira, da ideologia correta, os quais teriam o direito de se apossar do poder de Estado para, por meio desse poder, exercido autocraticamente, regenerar os imperfeitos seres humanos, começando por tentar colonizar, top down, suas consciências.

O trágico século 20 já forneceu exemplos suficientes do que acontece quando reformadores de seres humanos (como Mao ou Pol Pot) se apossam do poder de Estado para ensinar ao povo como caminhar em direção às suas utopias generosas e igualitárias: o melhor indicador para avaliar os resultados desses movimentos autocratizantes talvez seja o número de cadáveres por hora que produzem como efeito colateral de seu empenho reformador.

Ocorre que a democracia não é mesmo um ensinar, mas um deixar aprender. É uma aposta de que os seres humanos comuns podem, sim, aprender a se autoconduzir – mesmo que não possuam nenhuma ciência ou técnica específica – quando imersos em ambientes que favoreçam ao exercício coletivo dessa educação democrática.

Mais uma vez John Dewey deve ser evocado. No discurso, “Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente” (1939) – em que lança sua derradeira contribuição às bases de uma nova teoria normativa da democracia que poderíamos chamar de democracia cooperativa – Dewey afirma que:

“A democracia é um modo de vida orientado por uma fé prática nas possibilidades da natureza humana. A crença no homem comum é um dos pontos familiares do credo democrático. Esta crença carece de fundamento e de sentido salvo quando significa uma fé nas possibilidades da natureza humana tal como essa se revela em qualquer ser humano, não importa qual seja a sua raça, cor, sexo, nascimento ou origem familiar, nem sua riqueza material ou cultural. Essa fé pode ser promulgada em estatutos, porém ficará só no papel a menos que se reforce nas atitudes que os seres humanos revelem em suas mútuas relações, em todos os acontecimentos da vida cotidiana... Abraçar a fé democrática significa crer que todo ser humano, independentemente da quantidade ou do nível de seus dotes pessoais, tem direito a gozar das mesmas oportunidades que qualquer outra pessoa para desenvolver quaisquer aptidões que possua. A crença democrática no princípio da iniciativa revela generosidade. É universal. É a crença na capacidade de todas as pessoas para dirigir sua própria vida, livre de toda coerção e imposição por parte dos demais, sempre que estejam dadas as devidas condições.

A democracia é um modo de vida pessoal que não está guiado pela mera crença na natureza humana em geral, senão pela fé na capacidade dos seres humanos para julgar e atuar inteligentemente nas condições apropriadas. Em mais de uma ocasião, fui acusado, por críticas provenientes de diversas posições, de abraçar uma fé imprópria, utópica, nas possibilidades da inteligência e na educação enquanto seu correlato. Seja como for, não fui eu quem inventou essa fé. A adquiri em meu entorno, na medida em que esse entorno estava infundido de um espírito democrático. Pois o que é a fé na democracia, em seu papel de consulta, discurso, persuasão, discussão e formação de opinião pública, que no longo prazo se autocorrige, salvo a fé na capacidade da inteligência do homem comum para responder com senso comum ao livre jogo de fatos e idéias, assegurado pelas garantias efetivas da investigação, da assembléia e da comunicação livres? Estou disposto a abandonar em mãos dos defensores dos estados totalitários, de direita e de esquerda, a crença no caráter utópico de dita fé. Pois a fé em questão está tão profundamente arraigada em métodos intrinsecamente democráticos que quando alguém que confessa ser democrata nega essa fé, condena-se a trair a causa que diz defender...

A democracia como modo de vida está orientada pela fé pessoal no trabalho do dia-a-dia com as demais pessoas. A democracia é a crença de que inclusive quando as necessidades, os fins ou as conseqüências diferem de indivíduo para indivíduo, o hábito da cooperação amistosa – hábito que não exclui a rivalidade e a competição, como no esporte – é por si uma valiosa contribuição à vida. Na medida do possível, extrair qualquer conflito que surja – e continuarão surgindo conflitos – para fora de um contexto de força e de resolução por meios violentos, para situá-lo no da discussão e da inteligência, é tratar os que discordam de nós – por muito grave que seja a discrepância – como pessoas com as quais podemos aprender e, neste sentido, como amigos. A autêntica fé democrática na paz é aquela que confia na possibilidade de dirimir as disputas, as controvérsias e os conflitos como empreendimentos cooperativos nos quais cada uma das partes aprende dando à outra a possibilidade de expressar-se, em lugar de considerá-la como um inimigo a derrotar e suprimir pela força, supressão essa que não é menos violenta quando se obtém por meios psicológicos como a ridicularização, o abuso, a intimidação, do que quando é conseqüência do confinamento na prisão ou em campos de concentração. A livre expressão das diferenças não é somente um direito dos demais, senão um modo de enriquecer nossa própria experiência. Cooperar, deixando que as diferenças possam ganhar livre expressão, é algo inerente ao modo de vida democrático...

Formulada em tais termos [de uma posição filosófica], a democracia é a crença na capacidade da natureza humana para gerar objetivos e métodos que acrescentem e enriqueçam o curso da experiência. As restantes formas de fé moral e social nascem da idéia de que a experiência deve estar sujeita em um ponto ou outro a certa forma de controle externo, a alguma “autoridade” que supostamente exista fora dos processos da experiência. O democrata crê que o processo da experiência é mais importante que qualquer resultado particular, de maneira que os resultados concretos têm verdadeiro valor se se empregam para enriquecer e ordenar o processo em curso. Já que o processo da experiência pode ser um agente educativo, a fé na democracia e a fé na experiência e na educação são uma e a mesma coisa. Quando os fins e os valores se separam do processo em curso, se convertem em hipóstases, em fixações que paralisam os resultados obtidos, impedindo que revertam sobre esse curso, abrindo o caminho e assinalando a direção de novas e melhores experiências.

Nesse contexto, a experiência significa a livre interação dos seres humanos com o entorno e suas condições – em particular, com o entorno humano. Tal interação transforma as necessidades e satisfaz os desejos por meio do aumento do conhecimento das coisas. O conhecimento das condições reais é a única base sólida para a comunicação e a participação; toda comunicação que não esteja baseada nesse conhecimento implica sujeição a outras pessoas ou às opiniões pessoais de outros. A necessidade e o desejo – de onde nasce o fim e a direção da energia – vão mais além do que existe, e portanto do conhecimento, da ciência. Abrem continuamente caminho para um futuro inexplorado e inalcançado...

Todo modo de vida carente de democracia limita os contatos, os intercâmbios, as comunicações e as interações que estabilizam, ampliam e enriquecem a experiência. Essa liberação e enriquecimento são uma tarefa que deve ser colocada no dia-a-dia. Posto que essa tarefa não pode chegar ao fim até que a experiência mesma seja finalizada, o propósito da democracia é e será sempre a criação de uma experiência mais livre e mais humana, na qual todos participemos e para a qual todos contribuamos”
(1).

Parece ficar evidente, nos trechos transcritos acima, que Dewey não tinha uma visão procedimental da democracia, nem a encarava apenas como “as regras do jogo” ou, ainda, como mera forma de legitimação institucional. Mais importante, porém, é sua visão “forte” da democracia – com a qual trabalhamos aqui – como um modo de vida, um meio que é simultaneamente um fim, capaz de promover a conversão de inimizade em amizade política.

Vale a pena repetir uma passagem: “tratar os que discordam de nós – por muito grave que seja a discrepância – como pessoas com as quais podemos aprender e, neste sentido, como amigos...”. Ora, isso é algo capaz de surpreender quem aprendeu a rezar pela cartilha do realismo de Carl Schmitt (em “O Conceito do Político”, escrito poucos anos antes da conferência de Dewey, da qual transcrevemos alguns trechos acima). Sim, a democracia para Dewey era, como ele mesmo afirma, uma espécie de “fé democrática na paz”, aquela fé “que confia na possibilidade de dirimir as disputas, as controvérsias e os conflitos como empreendimentos cooperativos nos quais cada uma das partes aprende dando à outra a possibilidade de expressar-se, em lugar de considerá-la como um inimigo a derrotar e suprimir pela força...” (idem).

O juízo de Dewey, de que “cooperar, deixando que as diferenças possam ganhar livre expressão, é algo inerente ao modo de vida democrático”, por isso que “a democracia é a crença de que inclusive quando as necessidades, os fins ou as conseqüências diferem de indivíduo para indivíduo, o hábito da cooperação amistosa – hábito que não exclui a rivalidade e a competição, como no esporte – é por si uma valiosa contribuição à vida” estabelece uma ruptura com as concepções adversariais de democracia que contaminaram as práticas totalitárias ou autoritárias, sejam provenientes da “direita” ou da “esquerda”.

Todavia, o que parece mais relevante nesse discurso de Dewey é sua visão antecipatória da rede social. Quando ele diz que “todo modo de vida carente de democracia limita os contatos, os intercâmbios, as comunicações e as interações que estabilizam, ampliam e enriquecem a experiência... [e que] o propósito da democracia é e será sempre a criação de uma experiência mais livre e mais humana, na qual todos participemos e para a qual todos contribuamos”, está antevendo as relações entre a democracia (como modo de vida comunitário) e a dinâmica de redes sociais distribuídas. Está dizendo que o poder (autocrático) age obstruindo fluxos ou colocando obstáculos à livre fluição, separando e excluindo nodos da rede social. E com isso, ao mesmo tempo, está indicando o que devemos fazer para nos livrar da dominação desse tipo de poder.

Parece claro que tal concepção cooperativa de democracia casa perfeitamente com aquilo que, muitos anos depois, fomos chamar de capital social (que nada mais é do que cooperação ampliada socialmente), como veremos no Epílogo deste livro.


Indicação de leitura

É bom reler o discurso de John Dewey (1939): “Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente” (“Creative Democracy: the task before usin The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press, 1998).


Nota
(1) Foi em 1939 que Dewey escreveu “Creative Democracy: the task before us”, para uma conferência, lida por Horace M. Kallen, em um jantar celebrado em sua homenagem, em 20 de outubro, dia em que o filósofo completava oitenta anos. Esse texto foi publicado, pela primeira vez, em “John Dewey and the Promise of America”, Progressive Education Booklet nº 14 (Columbus, Ohio: American Education Press, 1939). Embora seja a última contribuição de Dewey à teoria da democracia, continua sendo ignorado no debate atual sobre o tema da radicalização da democracia.

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