... que não se pode democratizar a sociedade sem democratizar a política e que só se pode alcançar a democracia praticando democracia (não sendo possível tomar um atalho autocrático para uma sociedade democrática);
"Os meios que a democracia se esforça por articular são aqueles próprios da atividade voluntária em total ausência de coerção; trata-se de obter assentimento e consenso sem impor violência alguma".
(John Dewey, 1937)
Deveria ser óbvio que não se pode democratizar a sociedade sem democratizar a política. Do contrário, caberia a alguém democratizar a sociedade para e pela sociedade, o que nega o objetivo de democratização da sociedade. Democracia, ainda quando queiramos enfatizar seu conteúdo social, é política. Democratização pressupõe exercício democrático, participação democrática e, por conseguinte, constituição de sujeitos democráticos, o que só é possível no interior mesmo de um processo democrático.
Também deveria ser óbvio que só se pode alcançar a democracia praticando democracia. Não é possível tomar um atalho autocrático para uma sociedade democrática. A democracia é, simultaneamente, meio e fim, constituindo-se, portanto, como alternativa de presente e não apenas como modelo utópico de futura sociedade ideal. Assim, não se pode chegar a uma sociedade democrática a não ser por meio do exercício da democracia.
Tais constatações são um reconhecimento tardio a John Dewey. Como ele escreveu, no artigo “A democracia é radical” (1937):
“A democracia não somente encarna fins que até os ditadores reivindicam hoje como próprios, fins como a segurança dos indivíduos e a oportunidade para que desenvolvam suas respectivas personalidades. A democracia significa, antes de qualquer coisa, defender os meios necessários para que tais fins possam ser levados a termo. Os meios que a democracia se esforça por articular são aqueles próprios da atividade voluntária em total ausência de coerção; trata-se de obter assentimento e consenso sem impor violência alguma. É a força da organização inteligente versus a força da organização imposta de fora para dentro e de cima para baixo. O princípio fundamental da democracia consiste em que os fins da liberdade e da autonomia para todo indivíduo somente podem ser alcançados empregando-se meios condizentes com esses fins” (1).
Dewey deveria ser lido e relido todos os dias pelos democratas hoje confrontados com renovadas tentativas de usar a democracia (como fim) contra a democracia (como meio). O que espanta é a clareza desse senhor de quase 80 anos – e há 70 anos – diante de uma questão que se arrasta sem solução teórica e prática até os dias de hoje. Por que John Dewey pôde ter tamanha clareza? Por duas razões, pelo menos: em primeiro lugar porque ele estava realmente convertido à democracia como idéia (ou seja, a democracia no sentido “forte” do conceito) e, em segundo lugar, porque ele vivia um momento histórico em que a democracia estava sendo usada instrumentalmente para legitimar a autocracia (tanto à direita, com o nacional-socialismo alemão, quanto à esquerda, com o bolchevismo da III Internacional ainda em expansão). Isso reforça o conceito “forte” de democracia do qual partimos aqui, que estabelece que só se pode conceituar – e, portanto, conceber a – democracia diante da autocracia.
Tudo indica que vivemos hoje um momento semelhante. Não estamos na iminência de uma guerra generalizada (como estava Dewey em 1937, na ante-sala da segunda grande guerra mundial) e não existem ameaças totalitárias globais semelhantes ao nazismo e ao comunismo. No entanto, a perversão da política promovida pelos diversos populismos (remanescentes ou reflorescentes, sobretudo na América Latina) constitui uma ameaça seriíssima à democracia que só pode ser plenamente percebida por quem está convencido – como Dewey estava – da necessidade da radicalização da democracia. Infelizmente tanto os liberais quanto os socialdemocratas de hoje não estão convencidos disso. Crêem que basta se posicionar (e ainda por cima timidamente) na defesa das regras formais do sistema representativo, com suas instituições e procedimentos limitados ao voto secreto, às eleições periódicas, à alternância de poder, aos direitos civis e à liberdade de organização política, enfim, ao chamado Estado de direito e ao império da lei. Parodiando Tayllerand, parecem não ter esquecido nada e também não ter aprendido nada com o século passado. Mas enquanto eles cochilam, vai avançando o uso da democracia contra a democracia com o fito de manter no poder, por longo prazo, grupos privados que proclamam o ideal democrático como cobertura para enfrear o processo de democratização das sociedades que parasitam, como veremos no próximo capítulo.
Indicação de leitura
É necessário ler o artigo de John Dewey, “A democracia é radical”, publicado originalmente em Common Sense 6 (janeiro de 1937) e constante da coletânea The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy (existe edição em espanhol: in Liberalismo y Acción Social y otros ensayos. Valência: Alfons El Magnànim, 1996).
Nota
(1) Cf. Dewey, John (1937). “Democracy is Radical” in The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press, 1998.
É necessário ler o artigo de John Dewey, “A democracia é radical”, publicado originalmente em Common Sense 6 (janeiro de 1937) e constante da coletânea The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy (existe edição em espanhol: in Liberalismo y Acción Social y otros ensayos. Valência: Alfons El Magnànim, 1996).
Nota
(1) Cf. Dewey, John (1937). “Democracy is Radical” in The Essential Dewey: Vol. 1 – Pragmatism, Education, Democracy. Indianapolis: Indiana University Press, 1998.
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