... que a democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico (e que o populismo e a demagogia têm o inevitável efeito de subverter a democracia);
Se os votos da maioria da população pudessem ficar acima das instituições, não haveria possibilidade de democracia.
É reconhecidamente uma falha “genética” da democracia sua falta de proteção contra o discurso inverídico, pelo menos no curto prazo. Tal falha – que já se manifestava entre os gregos (como jactância, por exemplo) – manifesta-se atualmente como bravata ou, simplesmente, como mentira mesmo, no nível mais chulo do termo. O discurso inverídico é, em geral, feito na forma de promessas ao povo, que não poderão ser cumpridas mas que têm como objetivo apenas angariar simpatias e votos. Ontem como hoje tudo se baseia na idéia demagógica de que democracia é fazer a vontade do povo.
A idéia de que democracia é fazer a vontade do povo é uma variante populista de (in)compreensão da democracia. O fato de a democracia ser uma política feita ex parte populis não significa que alguém – um representante supostamente ungido pelo povo – possa encarnar a missão de fazer a vontade do povo (e, antes, que tal representante tenha o condão de interpretar essa vontade), como sugere a expressão. Ao contrário, no máximo, seria possível dizer que a democracia é uma maneira de o povo realizar sua vontade, mas referindo-se isso ao processo democrático como um todo e não à delegação de tal missão a um representante escolhido por maioria.
A mitificação da noção de ‘vontade do povo’ leva, não raro, a outras perversões, como a de que os votos da maioria da população estão acima das decisões das instituições democráticas quando tais instituições representam apenas as minorias e a de que um grande líder identificado com o povo pode fazer mais do que instituições cheias de políticos controlados pelas elites.
No primeiro caso, estamos diante de um argumento construído para legitimar a degeneração das instituições, para que elas não possam mais ser capazes de frear a voracidade pelo poder da maioria. Se as instituições ficassem ao sabor da vontade da maioria, não poderiam ser fiéis do processo democrático e não poderia, a rigor, subsistir qualquer regime democrático. Instituições não têm que “representar” – stricto sensu – nem maioria, nem minorias. Seu papel é garantir que a democracia seja o regime em que as (múltiplas) minorias possam vir a se tornar maioria e, em qualquer circunstância, possam continuar existindo como minorias, mesmo quando já tenham sido maioria. Em suma, antes de impor uma ordem que favoreça a governabilidade (para o bom exercício dos mandatos da maioria), cabe às instituições democráticas estabelecer aquele tipo de ordem capaz de garantir a liberdade, sobretudo a liberdade daqueles que discordam da maioria e a ela se contrapõem dentro das regras institucionais vigentes. Assim, se os votos da maioria da população pudessem ficar acima das instituições, não haveria possibilidade de democracia.
No segundo caso estamos diante de uma perigosíssima afirmação para a democracia, em geral difundida por líderes populistas. Vale a pena abrir aqui um parênteses para examinar o populismo, na medida em que ele se constitui como uma forma de subverter a democracia.
O historiador mexicano Enrique Krauze (2006) escreveu recentemente que o populismo – ao contrário do que se imaginava – continua sendo uma variante política da atualidade, sobretudo na América Latina (1). Ele mostrou como está surgindo o fenômeno da emergência de um “populismo latino-americano pós-moderno” – que também poderia ser chamado de neopopulismo – que se diferencia das formas tradicionais, mais conhecidas (de populismo), que se caracterizavam por uma irresponsabilidade macroeconômica.
Líder carismático, demagogia e palanquismo, dificuldade em aceitar a crítica e a opinião do outro, esbanjamento de recursos públicos (sobretudo para financiar gastos crescentes do Estado com pessoal, quer dizer, com aparelhamento), assistencialismo, incentivo à divisão da sociedade na base dos pobres contra os ricos (ou do povo contra as elites), mobilização das massas, criação de inimigos, desprezo pela ordem legal e desvirtuamento das instituições – todos esses ingredientes, quando combinados, compõem a fórmula do novo populismo.
O neopopulismo é esse novo tipo de populismo que floresce quando líderes carismáticos e salvacionistas, apoiados por correntes estatistas e corporativistas, apossam-se, pela via eleitoral, das instituições da democracia e as corrompem, gerando um ambiente degenerativo que perverte a política, privatiza partidariamente a esfera pública e enfraquece a sociedade civil. Trata-se de uma vertente política de caráter autoritário, que convive com a democracia mas que exerce sobre ela uma espécie de parasitismo; ou seja, que usa a democracia contra a democracia para enfrear e reverter o processo de democratização da sociedade, assegurando condições para a permanência, por longo tempo, de um mesmo líder e de seu grupo no poder.
Esse tipo de projeto de poder em geral não trabalha por fora das instituições e sim por dentro (daí sua característica de parasitismo da democracia). Enganam-se, portanto, os que acham que vão surpreender os neopopulistas em uma tentativa de golpe de Estado. Sua via principal é a eleitoral. Tudo o que fazem tem como objetivo continuar ganhando as eleições, sucessivamente: de um lado, o palanquismo-messiânico (do líder que se diz predestinado a salvar os pobres) regado com assistencialismo-clientelista (o neoclientelismo) e, de outro, a conquista dos meios institucionais pela privatização partidária da esfera pública e pela alteração da lógica de funcionamento das instituições. Essa é a fórmula do neopopulismo.
À pergunta de “por que renasce de tempos em tempos a erva daninha do populismo na América Latina?”, Krauze responde:
“As razões são diversas e complexas, mas aponto duas. Em primeiro lugar, porque suas raízes se fundem em uma noção mais antiga de "soberania popular" que os neo-escolásticos do século 16 e 17 propagaram nos domínios espanhóis, que teve uma influência decisiva nas guerras de independência de Buenos Aires ao México. O populismo tem, além disso, uma natureza perversamente "moderada" ou "provisória": não termina sendo plenamente ditatorial nem totalitário; por isso alimenta sem cessar a enganosa ilusão de um futuro melhor, mascara os desastres que provoca, posterga o exame objetivo de seus atos, amansa a crítica, adultera a verdade, adormece, corrompe e degrada o espírito público. Desde os gregos até o século 21, passando pelo aterrador século 20, a lição é clara: o efeito inevitável da demagogia é subverter a democracia” (2).
Mais adiante vamos examinar as duas ameaças contemporâneas à democracia – as vias protoditatoriais e manipuladoras – que se apóiam na demogogia e no populismo (3).
Indicações de leitura
É bom ler e reler várias vezes o artigo de Enrique Krauze, “Os dez mandamentos do populismo”, traduzido e republicado pelo jornal O Estado de São Paulo. Outro artigo interessante é “El hipnótico modelo populista”, de Marcos Aguinis, publicado pelo jornal La Nación (15/06/07).
Notas
(1) Krause, Enrique (2006). “Os dez mandamentos do populismo”. O Estado de São Paulo (15/04/06). Enrique Krauze Kleinbort é editor, historiador e ensaísta mexicano, diretor da Editorial Clío e da revista cultural “Letras Libres”.
(2) Idem.
(3) Cf. o capítulo r) regras.
É reconhecidamente uma falha “genética” da democracia sua falta de proteção contra o discurso inverídico, pelo menos no curto prazo. Tal falha – que já se manifestava entre os gregos (como jactância, por exemplo) – manifesta-se atualmente como bravata ou, simplesmente, como mentira mesmo, no nível mais chulo do termo. O discurso inverídico é, em geral, feito na forma de promessas ao povo, que não poderão ser cumpridas mas que têm como objetivo apenas angariar simpatias e votos. Ontem como hoje tudo se baseia na idéia demagógica de que democracia é fazer a vontade do povo.
A idéia de que democracia é fazer a vontade do povo é uma variante populista de (in)compreensão da democracia. O fato de a democracia ser uma política feita ex parte populis não significa que alguém – um representante supostamente ungido pelo povo – possa encarnar a missão de fazer a vontade do povo (e, antes, que tal representante tenha o condão de interpretar essa vontade), como sugere a expressão. Ao contrário, no máximo, seria possível dizer que a democracia é uma maneira de o povo realizar sua vontade, mas referindo-se isso ao processo democrático como um todo e não à delegação de tal missão a um representante escolhido por maioria.
A mitificação da noção de ‘vontade do povo’ leva, não raro, a outras perversões, como a de que os votos da maioria da população estão acima das decisões das instituições democráticas quando tais instituições representam apenas as minorias e a de que um grande líder identificado com o povo pode fazer mais do que instituições cheias de políticos controlados pelas elites.
No primeiro caso, estamos diante de um argumento construído para legitimar a degeneração das instituições, para que elas não possam mais ser capazes de frear a voracidade pelo poder da maioria. Se as instituições ficassem ao sabor da vontade da maioria, não poderiam ser fiéis do processo democrático e não poderia, a rigor, subsistir qualquer regime democrático. Instituições não têm que “representar” – stricto sensu – nem maioria, nem minorias. Seu papel é garantir que a democracia seja o regime em que as (múltiplas) minorias possam vir a se tornar maioria e, em qualquer circunstância, possam continuar existindo como minorias, mesmo quando já tenham sido maioria. Em suma, antes de impor uma ordem que favoreça a governabilidade (para o bom exercício dos mandatos da maioria), cabe às instituições democráticas estabelecer aquele tipo de ordem capaz de garantir a liberdade, sobretudo a liberdade daqueles que discordam da maioria e a ela se contrapõem dentro das regras institucionais vigentes. Assim, se os votos da maioria da população pudessem ficar acima das instituições, não haveria possibilidade de democracia.
No segundo caso estamos diante de uma perigosíssima afirmação para a democracia, em geral difundida por líderes populistas. Vale a pena abrir aqui um parênteses para examinar o populismo, na medida em que ele se constitui como uma forma de subverter a democracia.
O historiador mexicano Enrique Krauze (2006) escreveu recentemente que o populismo – ao contrário do que se imaginava – continua sendo uma variante política da atualidade, sobretudo na América Latina (1). Ele mostrou como está surgindo o fenômeno da emergência de um “populismo latino-americano pós-moderno” – que também poderia ser chamado de neopopulismo – que se diferencia das formas tradicionais, mais conhecidas (de populismo), que se caracterizavam por uma irresponsabilidade macroeconômica.
Líder carismático, demagogia e palanquismo, dificuldade em aceitar a crítica e a opinião do outro, esbanjamento de recursos públicos (sobretudo para financiar gastos crescentes do Estado com pessoal, quer dizer, com aparelhamento), assistencialismo, incentivo à divisão da sociedade na base dos pobres contra os ricos (ou do povo contra as elites), mobilização das massas, criação de inimigos, desprezo pela ordem legal e desvirtuamento das instituições – todos esses ingredientes, quando combinados, compõem a fórmula do novo populismo.
O neopopulismo é esse novo tipo de populismo que floresce quando líderes carismáticos e salvacionistas, apoiados por correntes estatistas e corporativistas, apossam-se, pela via eleitoral, das instituições da democracia e as corrompem, gerando um ambiente degenerativo que perverte a política, privatiza partidariamente a esfera pública e enfraquece a sociedade civil. Trata-se de uma vertente política de caráter autoritário, que convive com a democracia mas que exerce sobre ela uma espécie de parasitismo; ou seja, que usa a democracia contra a democracia para enfrear e reverter o processo de democratização da sociedade, assegurando condições para a permanência, por longo tempo, de um mesmo líder e de seu grupo no poder.
Esse tipo de projeto de poder em geral não trabalha por fora das instituições e sim por dentro (daí sua característica de parasitismo da democracia). Enganam-se, portanto, os que acham que vão surpreender os neopopulistas em uma tentativa de golpe de Estado. Sua via principal é a eleitoral. Tudo o que fazem tem como objetivo continuar ganhando as eleições, sucessivamente: de um lado, o palanquismo-messiânico (do líder que se diz predestinado a salvar os pobres) regado com assistencialismo-clientelista (o neoclientelismo) e, de outro, a conquista dos meios institucionais pela privatização partidária da esfera pública e pela alteração da lógica de funcionamento das instituições. Essa é a fórmula do neopopulismo.
À pergunta de “por que renasce de tempos em tempos a erva daninha do populismo na América Latina?”, Krauze responde:
“As razões são diversas e complexas, mas aponto duas. Em primeiro lugar, porque suas raízes se fundem em uma noção mais antiga de "soberania popular" que os neo-escolásticos do século 16 e 17 propagaram nos domínios espanhóis, que teve uma influência decisiva nas guerras de independência de Buenos Aires ao México. O populismo tem, além disso, uma natureza perversamente "moderada" ou "provisória": não termina sendo plenamente ditatorial nem totalitário; por isso alimenta sem cessar a enganosa ilusão de um futuro melhor, mascara os desastres que provoca, posterga o exame objetivo de seus atos, amansa a crítica, adultera a verdade, adormece, corrompe e degrada o espírito público. Desde os gregos até o século 21, passando pelo aterrador século 20, a lição é clara: o efeito inevitável da demagogia é subverter a democracia” (2).
Mais adiante vamos examinar as duas ameaças contemporâneas à democracia – as vias protoditatoriais e manipuladoras – que se apóiam na demogogia e no populismo (3).
Indicações de leitura
É bom ler e reler várias vezes o artigo de Enrique Krauze, “Os dez mandamentos do populismo”, traduzido e republicado pelo jornal O Estado de São Paulo. Outro artigo interessante é “El hipnótico modelo populista”, de Marcos Aguinis, publicado pelo jornal La Nación (15/06/07).
Notas
(1) Krause, Enrique (2006). “Os dez mandamentos do populismo”. O Estado de São Paulo (15/04/06). Enrique Krauze Kleinbort é editor, historiador e ensaísta mexicano, diretor da Editorial Clío e da revista cultural “Letras Libres”.
(2) Idem.
(3) Cf. o capítulo r) regras.
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