20080518

CAPÍTULO Z | TOPIA

... que a “utopia” da democracia é a política – uma topia – e não o contrário (ou seja, que não se deve usar a política para objetivos extrapolíticos, como levar “as massas” para algum lugar do futuro; e que, na verdade, não se quer nada com a política a não ser que os seres humanos possam, aqui e agora, viver em liberdade, como seres políticos, participantes da comunidade política).


A democracia não é o porto, o ponto de chegada
e sim o modo de caminhar.


Quem precisa de utopia é a autocracia, não a democracia. As utopias igualitárias e totalitárias querem – todas elas – reformar o homem porque acham (como vimos no capítulo anterior) que o ser humano veio com uma espécie de “defeito de fábrica” que deve ser consertado pelo Estado para que seja possível habitarmos a cidade ideal. A democracia, que não precisa de utopia, não quer fazer nada disso: quer, apenas, que o ser humano possa – aqui e agora – viver em liberdade, como um ser político, como um participante da comunidade política.

Sim, não se trata de levar “as massas” a um lugar que não-existe (u-topus). Essa é uma preocupação de candidatos a condutores de rebanhos, não de democratas. Toda condução de rebanhos é um movimento autocrático. Todo arrebanhamento, toda diluição da individualidade pela sua inserção em uma massa disforme e indiferenciada concorre para a autocratização, não para a democratização. Na democracia (no sentido “forte” do conceito), trata-se, sim, de levar as pessoas para a política: mas uma-a-uma.

A democratização é um movimento em direção à política no sentido que os gregos atribuíram ao conceito. Nesse sentido, o objetivo da democracia é a política, a criação daquilo que os gregos denominaram de polis, coisa que, incorretamente, foi tomada como sinônimo de Cidade-Estado. Mas, como vimos, o que é próprio da polis, o que a caracteriza e distingue dos outros Estados antigos, é o fato de ela ser uma comunidade (koinomia) política.

Toda política que não é feita ex parte principis já é o fim, é o resultado da democracia-em-realização, e não um instrumento para se obter qualquer coisa. Para a democracia (no sentido “forte” do conceito), esse fim significa também um meio: uma política cada vez mais democratizada; é nesse sentido que se pode falar que a radicalização da democracia passa pela democratização do que hoje se chama de política.

Não se quer obter nada com a política, a não ser – vale a pena repetir – os seres humanos viverem como seres políticos, isto é, conviverem entre iguais (isonomia) em uma rede pactuada de conversações em que a livre opinião proferida (isegoria) é equitativamente valorizada em princípio (isologia). Ora, essa é a definição de democracia compatível com o sentido da política como liberdade. Se a democracia puder ser definida assim, então ela não passa de sinônimo de política.

A finalidade da democracia é a liberdade, ou seja, a política; não a igualdade. A igualdade é a condição sem a qual não se pode exercer a política, quer dizer, a liberdade. Se os escravos, os estrangeiros e as mulheres de Atenas participassem da ágora, não poderia haver democracia na Grécia – a menos que eles deixassem de ser o que eram, ou seja, passassem a ser (iguais aos) cidadãos. Mas só então eles seriam livres no sentido político.

Isso significa que, se existe qualquer coisa como uma libertação dos excluídos da cidadania, essa libertação deve levar a uma inclusão na cidadania política para que se transforme em liberdade política. Ora, a liberdade política nada mais é do que o exercício da vida política.

Assim, quem faz política instrumentalmente para obter qualquer coisa extrapolítica, não faz, na verdade, política. A política não é um instrumento, é um modo de efetivar a liberdade, atualizá-la no cotidiano da rede de conversações que tece o espaço público, sendo-se, simplesmente, um ser político.

Para que, afinal, serve a democracia se não for para melhorar a vida dos seres humanos, incluir os excluídos, enfim, possibilitar maior desenvolvimento humano, social e sustentável? É o que geralmente as pessoas perguntam (e se perguntam). Todavia, conquanto guarde profundas relações com tais objetivos (como veremos no Epílogo deste livro), a democracia não pode ser usada como instrumento para atingi-los na medida em que ela já faz parte desses objetivos, está co-implicada em sua realização. A democracia tem uma “utopia” que é uma não-utopia porquanto não é finalística, não é Shangrilah, Eldorado ou a Cidade do Sol, mas a estrela polar dos navegantes que pode ser vista por qualquer um, independentemente do poder que arregimentou ou do conhecimento que acumulou, de qualquer lugar no meio do caminho. E que não é para ser alcançada no futuro. E, ainda, que não admite que alguém – em virtude de sua força ou de sua sabedoria – faça-nos seguir um mapa (o seu mapa) para aportá-la.

Por quê? Porque a democracia não é o porto, o ponto de chegada (no futuro), mas o modo de caminhar (no presente). Assim, a “utopia” da democracia é uma topia: a política. É viver em liberdade como um ser político: cada qual como um participante – único, diferenciado, totalmente personalizado – da comunidade política.


Indicações de leitura

Novamente são aqui recomendados os textos – publicados postumamente – de Hannah Arendt (c. 1950-59) incluídos na coletânea O que é política? (Frags. das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz).

É bom ler também os estudos clássicos sobre a democracia grega, já indicados, de Jones: Athenian Democracy (1957); de Walter Agard: What Democracy Meant to the Greeks (1965) e a tradução para o inglês do livro de Morgens Herman Hansen: The Athenian Democracy in the Age of Demosthenes: Structure, Principles, and Ideology (1991).

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